Dezenas de pessoas dormem no Aeroparque Jorge Newbery, e refeitórios populares não conseguem atender à demanda de pobres sem recursos para comprar alimentos

O Aeroparque Jorge Newbery, o aeroporto mais utilizado pelos brasileiros que chegam à capital argentina, transformou-se, nos últimos meses, em abrigo para dezenas de pessoas que vivem nas ruas.

As cenas de argentinos dormindo no chão, ao lado de escadas rolantes, atrás de telões que indicam os horários dos voos, e até mesmo em sofás de cafés do aeroporto portenho impactam quem passa por lá, chegando ou partindo. A situação social da Argentina está se deteriorando rapidamente, e a expectativa é de uma piora expressiva nos próximos meses.

Atualmente, segundo dados do segundo semestre de 2022 do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), 39,2% dos argentinos vivem abaixo da linha da pobreza, o que representa 18,6 milhões de pessoas (no primeiro semestre, a taxa era de 36,5%). 

Outros 8,1% (3,8 milhões de argentinos) são indigentes, ou seja, não têm recursos para satisfazer suas necessidades básicas de alimentação. Um dos dados mais dramáticos da crise neste que já foi um dos dez países mais ricos do mundo é o percentual de crianças pobres: 54,12%.

Com o inverno se aproximando, e as temperaturas já abaixo dos 10°C durante a noite, alguns dos indigentes passaram a se refugiar no aeroporto, onde a Polícia de Segurança Aeroportuária (PSA) tem ordens de não incomodá-los. Segundo comentou ao GLOBO um oficial da PSA, que pediu anonimato, existe apenas uma lista com nomes de pessoas que passam a noite no Aeroparque, mas, como se trata de um espaço público, os moradores em situação de rua podem dormir onde quiserem.

O desempregado Sérgio Fernández é um desses moradores, que passou a pernoitar no aeroporto há dois meses, quando foi demitido.

— Aqui é tranquilo, ninguém reclama da nossa presença. Espero conseguir outro emprego em breve e poder alugar alguma coisa, mas hoje vivo com um subsídio estatal de 22 mil pesos (R$ 275, no mercado paralelo), e com isso apenas consigo comer o básico — conta Sergio, de 52 anos, enquanto acomoda suas sacolas e um cobertor, que usa como cama.

De acordo com dados oficiais divulgados no ano passado, 2.962 argentinos viviam na rua, em todo o país, naquela ocasião. Deste total, 60% estavam na capital. Mas ONGs locais como a Projeto 7, entre muitas outras, questionam as estatísticas do Indec. Seu fundador, Horacio Avila, afirmou a meios de comunicação locais que, segundo censos realizados por várias ONGs que ajudam moradores em situação de rua, o número já chega a cerca de 10 mil, e aumentou 30% entre 2021 e 2022.

Ao drama das pessoas que estão se instalando nas ruas, principalmente na capital, soma-se o da fome. Os refeitórios populares da cidade e da Grande Buenos Aires não estão conseguindo atender a uma demanda cada vez maior.

Todos os dias, com exceção dos domingos, Carlos Esquivel, de 60 anos, toma café, almoça e janta no refeitório da Fundação Margarita Barrientos, no bairro de Lugano, região humilde de Buenos Aires. 

Há um ano, ele foi demitido da estatal Aysa, que fornece água à capital e a vários municípios da Grande Buenos Aires, e com um subsídio de parcos 30 mil pesos mensais (R$ 348), consegue apenas pagar um aluguel de 25 mil pesos (R$ 290). Se não fosse pela ajuda de pessoas como Margarita Barrientos, que há quase 30 anos comanda um exército de voluntários que diariamente entregam comida em Lugano e outros refeitórios populares, Carlos, como milhares de outros argentinos que engrossam a lista dos novos pobres do país, não teria o que comer.

No maior refeitório que a fundação de Margarita —chamada de "mãe" por muitas das pessoas que ajuda diariamente —construiu, a pobreza impacta. Famílias inteiras chegam ao local às 6h da manhã, para garantir um prato de comida na hora do almoço. 

Todos os dias, contou Margarita ao GLOBO, são entregues 3 mil quentinhas, e quando as gigantescas panelas usadas pelos cozinheiros ficam vazias, os voluntários entregam o que tiverem à disposição: pão, ovos, um pacote de macarrão ou de arroz. A ordem da chefe, que monitora tudo com carinho e dedicação, é que ninguém passe fome.

— O que estamos vivendo é pior do que qualquer outra crise na Argentina. Em 1989, quando tivemos hiperinflação, eu era catadora de lixo e com isso conseguia comer e até ajudar algumas pessoas. Hoje, temos argentinos que trabalham, vendedores ambulantes, que sem os refeitórios não teriam o que comer — lamenta Margarita, uma celebridade em seu país.

Nas últimas semanas, ela e sua equipe de colaboradores estiveram angustiados porque em vários dias as quentinhas não foram suficientes para atender à demanda.

— Estão chegando pessoas novas, pessoas que não estavam na pobreza e agora não têm outra alternativa. Damos comida, roupas, cobertores, tudo o que pudermos fazer para ajudar — conta Margarita, que na província de Santiago del Estero, uma das mais pobres da Argentina, no norte, alimenta 4 mil pessoas todos os dias.

Sua fundação sobrevive graças a doações de empresas — que cada vez são mais escassas — e de particulares. Margarita é uma figura conhecida, e quando aparece em algum meio de comunicação pedindo mais ajuda, as doações aumentam. Seus voluntários costumam dizer que esta guerreira tem um carisma especial, que leva muitas pessoas a colaborarem com seu esforço diário de combater a fome na Argentina.

— Eu como aqui todos os dias, e aos domingos como numa igreja perto do lugar onde moro. Estou com outros desempregados como eu que estão na mesma situação. Ninguém tem comida em casa — desabafo Carlos.

Ele chegou a pesar 200 quilos, quando ainda tinha um emprego, e após ficar desempregado perdeu 120 quilos. Agora, com a ajuda da fundação de Margarita, voltou a superar os 100 quilos.

— Vivo graças a um subsídio estatal e aos refeitórios populares — afirma Carlos, enquanto recebe sua quentinhas depois de várias horas de espera.

O trabalho de Margarita é apenas uma de diversas iniciativas que existem atualmente na Argentina para enfrentar o drama da fome. As ONGs que atuam nas principais cidades do país para distribuir alimentos são cada vez em maior número. A 5 Peces y Dos Panes, criada há três anos, é uma delas. Todas as semanas, um grupo de voluntários vai a pontos centrais de Buenos Aires para entregar quentinhas.

— Ultimamente, vemos pessoas que claramente são novos pobres. E cada vez vemos mais pessoas comendo graças à ajuda de grupos como o nosso. Entregamos entre 140 e 150 quentinhas, e nas últimas saídas não conseguimos atender a todas as pessoas — diz Tomás de Olazábal, da ONG portenha.

A Rede Solidária, criada em 1995 e presente em todo o país, entrega comida quase todos os dias na Praça de Maio, centro icônico de Buenos Aires.

— A maioria das pessoas que pede ajuda está morando na rua, e cada vez são mais. Todas as semanas vemos novos pobres que não têm recursos para satisfazer suas necessidades básicas de alimentação — explica Juan Carr, principal representante da Rede Solidária e referência obrigatória na hora de falar de fome na Argentina.

Para ele, os números atuais da pobreza argentina são “de partir o coração”.

— Quando vemos pessoas novas, fazemos o possível para tirá-la das ruas. Porque sabemos que se passarem três ou quatro meses, o mais provável é que esse pobre não consiga mais sair da pobreza — assegura Juan.

Para se contrapor ao Indec, os dados sobre pobreza com mais credibilidade no país são os elaborados pelo Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica (UCA). Atualmente, o observatório registra uma taxa de pobreza de 43,1% em todo o país, e de 46,5% na Grande Buenos Aires — em alguns distritos, a taxa chega a 74,9%. 

Apesar de ter crescido nos últimos anos — 10% em 2021 e 5,2% em 2022 — o país viu a pobreza aumentar, entre outras razões, pela escalada da inflação, que está acima de 100% ao ano. A informalidade no mercado de trabalho é outro dos motivos que explicam o aumento do número de pobres. Em média, 46% dos trabalhadores ocupados do país não têm carteira assinada. E atualmente, até mesmo argentinos com emprego — formal ou informal — recorrem a refeitórios populares para comer.


Fonte: O GLOBO