Regime de Daniel Ortega se perpetua no poder com aparelhamento do Judiciário, reeleição sem limites, e ataques contra a imprensa, a oposição e a Igreja

O Brasil anunciou na terça-feira que irá acolher nicaraguenses com a cidadania cassada pelo regime de Daniel Ortega, demonstrando preocupação com as violações dos direitos humanos em um país que torna-se cada vez mais autocrático. O partido único é gradualmente implementado, há uma cruzada contra ONGs, a imprensa livre e a Igreja Católica — revezes que apontam para uma "cubanização" do país centro-americano, com a consolidação de um regime autoritário e controle estatal sob todos os aspectos da vida.

Direto ao ponto: o que faz da Nicarágua um regime cada vez mais autocrático?

A Nicarágua tem um dos regimes mais autoritários da América Latina, que se intensificou na volta de Daniel Ortega ao poder em 2007;

Há uma piora contínua, contudo, desde a repressão maciça e violações de direitos humanos nos protestos antigoverno de 2018;

O regime aparelhou o Judiciário e aliados na Assembleia Nacional aprovaram em 2013 a reeleição sem limites, facilitando a perpetuidade de Ortega;

Vozes críticas são sistematicamente presas, silenciadas e torturadas, com um número de presos políticos apenas inferior ao de Cuba e Venezuela na região;

Mais de 222 prisioneiros foram libertados em fevereiro, mas mandados para os EUA e transformados em apátridas devido à "traição" ao país;

Mais de 3 mil ONGs já foram fechadas ou tiveram bens confiscados, perseguição que se soma à sofrida pela Igreja Católica e pela imprensa;

País é alvo de sanções americanas e da UE, que prejudicam ainda mais uma economia já debilitada.

De revolucionário a líder autocrata

A Nicarágua vive um dos mais brutais regimes autoritários da América Latina: o país fez apenas 23 de 100 pontos na avaliação deste ano da organização americana Freedom House sobre a liberdade no mundo. O Brasil, para fins comparativos, marcou 73.

Após integrar a Revolução Sandinista que pôs fim às quatro décadas da família Somoza no poder, em 1979, Ortega foi um dos integrantes da Junta de Reconstrução Nacional que comandou o país por seis anos. Ele foi eleito presidente em 1984, cargo no qual permaneceria até 1990. Houve um interregno de 17 anos, mas o político retorno à Presidência de 2007. Desde então, está lá ininterruptamente.

A erosão foi gradual, mas se intensificou após os protestos antigoverno de 2018, quando a duríssima repressão oficial deixou mais de 300 mortos, além de relatos de prisões extrajudiciais, torturas e desaparecimentos.

Aparelhamento do Judiciário

Uma das marcas mais claras do processo de "cubanização" que a Nicarágua atravessa é a falta de independência do Judiciário. É um processo que ocorre gradualmente desde 1999, quando Ortega, à época líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), firmou um acordo com o então presidente Arnoldo Alemán, que concentrava o poder no Executivo. Batizado de "Alemán-Ortega", o pacto na prática estabelecia um sistema bipartidário, que ruiu gradualmente.

Em 2010, Ortega emitiu um decreto executivo prorrogando o mandato de todas as autoridades do governo e de Estado, incluindo do Conselho Supremo Eleitoral e da Suprema Corte cujos mandados expirariam. Pela lei da época, apenas o Legislativo tinha o poder de nomear ou remover juízes. Hoje, analistas locais afirmam que cerca de dois terços dos magistrados do país têm laços com a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), partido governista.

Reeleição presidencial sem limite de termos

Ortega venceu voltou à Presidência em 2006, após vencer um pleito realizado depois que a Constituição foi alterada para permitir que os candidatos vencessem sem uma maioria absoluta de votos. Ele estava vetado de concorrer nas eleições presidenciais de 2011, já que a Constituição em vigor proibia dois mandatos consecutivos, mas em 2010 a Suprema Corte determinou que poderia concorrer.

Em uma reforma constitucional em 2013, a Assembleia Nacional, controlada pelos governistas, instituiu a reeleição sem limites, o que permitiu a Ortega permanecer no poder em pleitos amplamente questionados. Na disputa presidencial de 2021, o presidente mandou prendeu e anulou a candidatura de todos seus potenciais rivais. Venceu o pleito de fachada com mais de 75% dos votos válidos.

A perseguição também se estendeu a opositores que concorriam a um dos 92 assentos da Assembleia Nacional, e à anulação do status legal das principais legendas rivais, como o Partido Cidadãos pela Liberdade (CxL). Os sandinistas têm hoje 75 parlamentares na Casa, e os partidos que ainda restam não apresentam um desafio real. Além disso, as eleições locais do ano passado deram aos sandinistas o controle de todas as 153 prefeituras do país.

Silenciamento e deportação de opositores

Tanto a ONU quanto outras organizações defensoras dos direitos humanos compilam violações dos direitos a um processo justo, prisões políticas, tortura e buscas sem mandado que se intensificaram desde 2018. A Nicarágua, segundo um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) do ano passado, só ficava atrás de Cuba e da Venezuela no número de presos políticos.

Em fevereiro passado, o país libertou 222 dos 245 considerados presos políticos, mas os deportou para os Estados Unidos e os desproveu de sua nacionalidade. Eles foram declarados apátridas horas após a Assembleia Nacional aprovar uma reforma na Constituição para modificar seu Artigo 21. Agora, a cláusula diz que "os traidores da pátria perdem a condição de cidadãos nicaraguenses". Ao menos outras 94 pessoas perderam a cidadania subsequentemente.

Após semanas de silêncio, o Brasil disse disse na terça que irá acolher aqueles que desejarem vir ao país. Vizinhos de esquerda e de direita se pronunciaram semanas antes de Brasília, acentuando as críticas de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz vista grossa a regimes autoritários de esquerda.

A fuga do país também é grande, com mais de 164 mil nicaraguenses detidos na travessia para os Estados Unidos no último ano fiscal, segundo dados da Agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) americana. Em 2021, os registros haviam ficado na casa de 55 mil. O fenômeno é intensificado pela Nicarágua ser hoje a segunda nação mais pobre da América Latina, atrás apenas do Haiti, lidando com a inflação crescente e salários em declínio.

ONGs fechadas e perseguição da Igreja

A perseguição se estende às ONGs: mais de 3 mil delas foram postas na ilegalidade ou tiveram bens confiscados, segundo a CIDH, sob o comando de Ortega. 

Em 2020, o Legislativo aprovou uma lei que obriga organizações civis e pessoas físicas que recebam recursos do exterior a se registrarem como agentes estrangeiros, algo que tem sido usado como plano de fundo para afirmar que as ONGs não "prestam contas" adequadamente ao país.

Em paralelo, Ortega também mira na Igreja Católica, imbróglio que se acentuou após padres darem abrigo a manifestantes durante os protestos de cinco anos atrás. Onze padres foram presos na cruzada, e outros tiveram sua entrada vetada ao retornarem para o país. Na terça, o regime ordenou o fechamento de duas universidades ligadas ao Vaticano, acusando-as de "descumprimento" das leis.

Na véspera, Ortega havia tomado a mesma medida contra a principal câmara empresarial nicaraguense, afastando-se do setor privado, um dos últimos parceiros que ainda tinha.

Fim da liberdade de imprensa

O governo faz uma cruzada contra a imprensa livre desde que Ortega retornou em 2007, buscando descreditar e obstruir críticos, intimidando e prendendo jornalistas e agindo para que veículos impressos não tivessem tinta ou papel para pôr exemplares nas bancas. Jornais como o El Nuevo Diario e o Metro foram forçados a interromper suas publicações.

Em 2020, o Legislativo aprovou sua Lei Especial contra Crimes Cibernéticos, facilitando a criminalização de vozes críticas na imprensa e nas redes sociais. Desde 2021, ao menos 20 veículos independentes foram fechados, e o governo interrompeu a transmissão de duas rádios críticas ao governo, acusando-as de envolvimento com esquemas de lavagem de dinheiro.

No ano passado, o governo criou um embargo ao papel e à tinta usado pelos jornais La Prensa e Hoy, forçando-os a não publicar. Forças de segurança fizeram uma batida na redação do La Prensa e prenderam seu editor-chefe, Juan Lorenzo Holman. O editor de outra publicação, o El Confidencial, Fernando Chamorro deixou o país após sua irmã, uma candidata presidencial, ser detida.

Desde 2018, segundo dados da organização Human Rights Watch, ao menos 200 jornalistas foram para o exílio. Além disso, a família Ortega tem o controle de pelo menos uma dúzia de canais de televisão, estações de rádio e sites de notícias por membros da família e aliados, todos financiados com dinheiro público. O governo também controla a produção cinematográfica e audiovisual.

Sanções ocidentais

Desde 2018, os Estados Unidos impuseram sanções contra mais de 500 cidadãos ligados ao regime, incluindo altos funcionários, deputados e membros da família presidencial nicaraguense. À lista juntam-se uma dezena de instituições públicas ou mistas, incluindo a polícia e a mineradora estatal. Desde então, já houve várias rodadas de sanções americanas e da União Europeia.

A lógica das sanções é de que mudanças de comportamento devem levar a relaxamento das punições. Uma das expectativas de Ortega com a libertação dos mais de 200 presos políticos e seu envio para os Estados Unidos era poder dizer que cedeu, buscando canais diplomáticos para debater um alívio das sanções. A ação, contudo, não representa nenhuma mudança real de postura.


Fonte: O GLOBO