Plano do governo de incluir na emenda constitucional mecanismo que reduz peso tributário sobre famílias mais carentes pode ajudar a reduzir desigualdade, apontam especialistas

A equipe econômica do governo Lula pretende colocar em prática, a partir de 2025, um novo sistema de devolução de parte dos tributos pagos pelas famílias de baixa renda, que já está sendo chamado de “cashback do imposto”. Os técnicos trabalham para usar o Cadastro Único do governo como base para definir os beneficiários.

Existirão duas alternativas para o repasse do dinheiro: um valor per capita estimado do imposto a ser devolvido com base nos gastos médios de uma família de baixa renda; ou por meio das compras no comércio, com a exigência da nota fiscal e o cruzamento de dados que comprovem que o comprador faz parte do cadastro.

Esse cashback, que leva o nome de “Imposto Sobre Valor Agregado (IVA) personalizado”, já está previsto nas propostas de reforma tributária que tramitam no Congresso — a PEC 45, que está na Câmara, e a PEC 110, parada no Senado.

As duas propostas serão unificadas e a expectativa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é que a mudança na forma de recolhimento de impostos, através do Imposto Sobre Valor Agregado, seja aprovada pelo Congresso este ano.

Após a aprovação da reforma tributária, o governo terá 180 dias para regulamentá-la, o que deve acontecer em 2024. Será preciso apresentar lei complementar no próximo ano para tratar do imposto unificado e garantir a segurança jurídica. É nessa etapa que o cashback deve ser detalhado.

Na visão de especialistas e do próprio governo, a novidade pode ajudar a diminuir a desigualdade social e seria mais eficiente que a desoneração de produtos da cesta básica para reduzir a regressividade do sistema brasileiro, ou seja, o alto peso dos impostos para a população mais pobre. No modelo de desoneração, pobres e ricos acabam sendo beneficiados com o desconto no imposto, observam os especialistas.

— Quem está no Cadastro Único, compra e fornece o CPF. Depois, é levantado o imposto que incidiu naquela compra, e devolve para as famílias, respeitando um teto — disse o secretário extraordinário para Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, durante palestra, citando que a reforma busca simplificar o sistema tributário e estimular o crescimento, e que o cashback é forma eficiente de política distributiva.

Por enquanto, a estimativa é que na reforma tributária a alíquota sobre o consumo no futuro IVA seja de 25%, uma das mais altas do mundo. Para o tributarista Roberto Quiroga, sócio-diretor do escritório Mattos Filho, na teoria, o cashback traz mais justiça tributária do que a desoneração de produtos da cesta básica:

— A desoneração de produtos beneficia ricos e pobres.

Renata Emery, sócia tributária do TozziniFreire Advogados, observa que há estudos mostrando que a devolução de impostos tende a ser mais regressiva, ou seja, reduz o alto peso dos impostos para a população mais pobre, do que a desoneração da cesta básica.

Medida alcança 72 milhões

Auferir os resultados dessa política tributária é um pilar importante, defende o advogado Samir Choaib, sócio do Choaib, Paiva e Justo Advogados:

— A ideia tem mote interessante, e pode incentivar a formalização com emissão de notas fiscais. É preciso acompanhar para ver os efeitos.

A devolução de impostos vem sendo proposta por diversos centros de estudos fiscais, além do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas poucos países adotaram o modelo em razão da complexidade.

No Japão foi implementado sistema de devolução de impostos para os mais pobres nos bens de maior consumo. A dificuldade foi fiscalizar o consumo d para contabilizar o valor a ser ressarcido.

O Canadá é considerado referência do cashback. Com um IVA único, o país dá contrapartida de créditos tributários para famílias de baixa renda, alcançando 9 milhões de pessoas ou 25% da população. As transferências variam de acordo com o tamanho da família, número de filhos menores e renda. Por ano, a devolução pode chegar a até US$ 2.400 canadenses (R$ 9.744).

Mas os créditos devolvidos no país somam 5% do total de benefícios sociais, o que significa que têm pouco impacto na redução da desigualdade, segundo especialistas.

Nos EUA, há devolução de parte dos impostos para trabalhadores de baixa renda com filhos e outros dependentes, com base nos impostos pagos. O crédito é e exercido na declaração anual de Imposto de Renda como uma restituição.

No Brasil, um exemplo está em vigor desde 2021 no Rio Grande do Sul e prevê a devolução de parte do ICMS à população de renda mais baixa, entre um a três salários, divididos em três faixas.

Ricardo Neves Pereira, subsecretário da Receita do estado explicou que na primeira etapa foi estimado o valor gasto das famílias beneficiadas e chegou-se a uma carga de 10% do ICMS sobre a renda. O valor de devolução foi de R$ 100 a cada trimestre, para famílias inscritas no Cadastro Único.

— Para as famílias que ganham até um salário, a carga tributária desse imposto foi reduzida em 50% — disse Neves, citando que o crédito é feito por meio de um cartão.

Um levantamento mostrou que a primeira parcela do benefício foi destinada a itens de primeira necessidade, sendo que 83% foram usados para compras em supermercados, atacados, açougues, restaurantes e padarias.

Na nova fase do programa, iniciada ano passado, as famílias estão sendo incentivadas a pedir nota fiscal e informar o CPF, reduzindo a informalidade dos serviços e do comércio. Com isso, a devolução será variável. Até agora, o programa gaúcho beneficiou quase 620 mil famílias com a devolução de R$ 278 milhões.

Estudo feito pelo movimento Pra Ser Justo, composto por entidades e organizações da sociedade civil, mostrou que após a unificação dos cinco tributos sobre o consumo (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) seria possível alcançar 72,4 milhões de pessoas na base da pirâmide de renda com a devolução mensal de até R$ 13,22 por pessoa. Esse cashback custaria R$ 9,8 bilhões por ano, cerca de metade do que o governo deixa de arrecadar com a desoneração da cesta básica.

Sem unanimidade

O cashback, entretanto, não é unanimidade. Entre as críticas estão a complexidade de implementação, fiscalização e a dificuldade de chegar a famílias nos rincões do país, além da possibilidade de fraude.

Fernando Gaiger Silveira, técnico de planejamento e pesquisa do IPEA, afirma que os valores devolvidos são muito baixos e têm impacto reduzido na melhoria de vida:

— Essa ideia tem apelo para vender uma reforma tributária que ajuda os pobres. Mas quem consome mais serviços são os ricos, portanto, poderíamos trazer o setor para uma tributação maior.

Róber Iturriet Avila, diretor do Instituto de Justiça Fiscal e professor de Economia da UFRGS, a devolução de impostos exige burocracia que torna o programa complexo:

— São indivíduos que por vezes não têm sequer CPF cadastrado, quanto mais registro nas Secretarias de Fazenda. E grande parte das compras é feita no mercado informal, sem nota fiscal.

Experiências no Brasil e no mundo

Canadá: País é considerado referência e dá contrapartida de créditos tributários para famílias de baixa renda, alcançando 9 milhões de pessoas ou 25% da população. Mas os créditos devolvidos somam 5% do total de benefícios sociais.

Estados Unidos: O governo oferece devolução de parte dos impostos a trabalhadores de baixa renda com filhos e outros dependentes, com base nos impostos pagos. O crédito é e exercido na declaração anual de Imposto de Renda como uma restituição.

Rio Grande do Sul: Programa devolve parte do ICMS pago por famílias com renda de um a três salários mínimos. Elas estão sendo incentivadas a pedir nota fiscal e informar o CPF, o que reduz a informalidade. Foram contempladas até agora 620 mil famílias.


Fonte: O GLOBO