Texto aprovado, além de legislar por PL no sentido contrário do STF, permite até contato com povos isolados

A proposta aprovada ontem no Senado sobre o marco temporal é um projeto de lei. PL não muda o texto constitucional. A verdade é que o Senado quis fazer uma provocação ao Supremo, cujo papel é exatamente definir o que é ou não constitucional. E a decisão foi que o marco temporal é inconstitucional. Ter sido aprovado de afogadilho e no mesmo dia da finalização do julgamento do STF não deixa dúvidas do caráter de provocação.

O projeto do Congresso vai para sanção do presidente Lula e deve ser vetado. Se for o veto pode ser derrubado. Mas qualquer ação no STF terminará com a conclusão de que é um texto que vai contra a Constituição.

Os parlamentares tanto sabem disso que já se articulam para preparar uma PEC na tentativa de alterar o artigo 231. Mas aí surge outro debate. Se as terras são consideradas um direito fundamental dos indígenas, estamos falando de uma cláusula pétrea, que não pode ser mudada mesmo por uma PEC.

A verdade é que essa discussão se manterá por causa da bancada ruralista. Na verdade, eles tiveram um ganho com a votação de ontem no Supremo. Apesar de o STF ter considerado inconstitucional o marco temporal, os ministros acabaram alargando o entendimento sobre a possibilidade de indenização aos proprietários de “boa fé”. Nesse caso, seriam necessárias provas concretas disso, fazendo aqui o parênteses que o que mais se vê na ocupação desses territórios é má fé.

A Constituição previa que os ocupantes fossem indenizados somente por benfeitorias, como a construção de terrenos ou currais, e não pela terra em si. O STF, portanto, atendeu aos ruralistas brasileiros neste ponto. Mas nada para o ruralismo brasileiro é suficiente. Eles querem mais retrocesso em relação à Constituição de 1988. Ela foi um marco ao redefinir de forma justa a relação entre indígenas e não indígenas na sociedade brasileira.

O projeto aprovado ontem no Senado é ruim como um todo. Não estabelece somente o marco temporal, ou seja, o princípio de que os indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988. Permite plantação de transgênicos em terra indígena, empreendimentos econômicos sem consulta às comunidades e contato com indígenas isolados por razões econômicas, que é uma temeridade do ponto de vista da preservação dos povos originários.

Eles dizem que forçar o contato seria válido se for de interesse nacional. Mas o interesse nacional é preservar a diversidade humana e cultural que existe no país, preservar os brasileiros de todas as origens. O que está proposto pelo Senado vai levar a mais desmatamento, grilagem, destruição do meio ambiente e ameaça aos povos indígenas.


Fonte: O GLOBO