Perda de autonomia dos municípios e aumento de carga de impostos para serviços e agropecuária são obstáculos difíceis de superar, diz o tributarista Gustavo Brigagão

O advogado tributarista Gustavo Brigagão, que há 40 anos atua na área, faz críticas à proposta de reforma tributária que está sendo discutida no Congresso. Diz que haverá alta de impostos “inadmissível” no setor de serviços, que será repassado para os preços, e prevê aumento dos litígios no período de transição, quando os dois sistemas vão vigorar simultaneamente.

Ele defende que é melhor manter o sistema com carga tributária maior para a indústria do que aprovar as mudanças pensadas pelo governo: “Para que destruir um time que está bom, cada país tem que ver a sua vocação”.

O sistema tributário brasileiro tem 40 anos e uma infinidade de impostos, alíquotas e normas. A proposta na Câmara pretende unificar os tributos, criando um IVA (imposto sobre valor agregado). Como avalia a reforma?

É um sistema que vem desde 1965, gera guerra fiscal, conflito de competência entre estados e municípios sobre uma mesma circulação de riquezas e uma carga extremamente elevada. A unificação de tributos é bem-vinda, desde que se tenha cuidado com o pacto federativo.

Quando unifica, quebra o pacto federativo, por isso a proposta de um IVA só gerou reação por parte dos estados e se evoluiu para o IVA dual (com um IVA unificando os impostos federais e outro unindo os tributos estaduais e municipais).

Ainda assim, deixa os municípios muitos descontentes, principalmente os que são grande arrecadadores. As grandes capitais são todas contrárias. A reforma é necessária, há um caos tributário absoluto, em complexidade e quantidade e alíquotas. Há aqueles que defendem uma alteração mais disruptiva do sistema em vez de aprimorá-lo.

Não tem legislação única que vai tratar do cipoal de impostos de 5 mil municípios, de mais de 20 leis que regulam o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e das especificidade do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), mas a reforma que está sendo proposta é desastrosa.

Vai ser uma carga tributária muito maior. O único setor beneficiado pela reforma é a indústria. Vão despir um santo para vestir outro. O setor de serviços e a agroindústria vão ser extremamente prejudicados. É um aumento que é inadmissível para o setor de serviços.

Mas a indústria paga mais impostos do que os serviços. Não seria razoável ter alíquotas semelhantes?

Não se pode tratar igualmente os que são desiguais. Alíquota única ofende esse princípio. É necessário um tratamento diferenciado, não só em relação a alíquotas. Outro absurdo é a eliminação de benefícios. Foram os benefícios fiscais que permitiram que empresas conseguissem sobreviver na pandemia.

Outra questão são as sociedades profissionais de médicos, contadores, enfermeiros, advogados que pagam um ISS (Imposto sobre Serviços) de valor fixo, não um percentual do faturamento. Isso vigora desde 1968, já se tentou mudar no STF (Supremo Tribunal Federal) e no Congresso sem sucesso. A alíquota vai recair sobre serviços prestados pela classe média.

Mas é correto ser um valor fixo, não seria mais justo ser um percentual sobre o faturamento?

Essa filosofia se aplica a impostos sobre a renda, não sobre consumo. Não se tributa renda com imposto sobre consumo.

É uma questão pacificada, não há chance de mudança?

Pacificada pelo Congresso e pelo Poder Judiciário. Se forem aplicadas todas as alíquotas, a carga tributária pode chegar a 30%. Não é razoável.

Qual seria a proposta ideal?

Não colocar uma alíquota única, manter benefícios fiscais, evitando os abusos, e prever a não cumulatividade (quando os impostos incidem sobre valores que embutem outros impostos), que deve ser ampla, irrestrita e estar na Constituição. Outra coisa é que não se pode fazer a reforma tributária do consumo, depois da renda, depois do patrimônio. O ideal seria pegar o conjunto, que elas conversem.

Esse é o maior erro. E quem são os juristas que estão cuidando da reforma? Está entregue na mão de economistas, o que é extremamente criticado no mundo jurídico. A Câmara inteira é contra isso que Appy (Bernard Appy, secretario extraordinário da reforma tributária) está propondo. O ideal seria ter alíquotas diferenciadas para garantir a sobrevivência dos contribuintes.

Do jeito que está, vai ser uma quebradeira geral. Tem que examinar cada setor, até dentro de serviços, para ter tratamentos diferenciados. Appy diz que serviços são mais consumidos pelos ricos, mas olha a Central do Brasil e vê quantos ricos estão transitando ali.

Quantas alíquotas seriam adequadas?

Nada impede de ter dez alíquotas, desde que se evite a complexidade das regras atuais e não sobrecarregue os setores. Pode até haver algum aumento de carga, mas não dessa ordem.

O setor de serviços e a agropecuária respondem por 76% da economia, não é muito peso sobre a indústria, que representa 24% do PIB?

Tem que ponderar, aumentar o período de transição (a reforma prevê seis anos) e prever alíquota menor para o setor de serviços e o agro. Pode até manter a forma atual, não destruir o time que está bom, com tributação maior na indústria. Cada país tem que ver sua vocação. Há uma pressão forte de muitos setores, assim como está a reforma tributária não vai passar.

A devolução do imposto, com o “cashback”, não seria um caminho?

Tenho muito receio do formato eleitoreiro que está se dando a isso. Não vai alcançar as pessoas que se beneficiam com a alíquota menor (na cesta básica, que é desonerada). O cashback vai alcançar os sem-teto, os indígenas? São produtos, como o nome diz, de subsistência, é para ter alíquota menor mesmo.

Acredita que vai aumentar o litígio?

Com o período de transição, quadruplicam os litígios. Será um caos os dois sistemas convivendo juntos. A solução para isso é não ter alíquota única.


Fonte: O GLOBO