Mulheres falam de traumas e crises de ansiedade de filhos que estudavam na escola Pequiá, na Zona Sul da capital paulista; donos da instituição foram presos nesta terça-feira

Quando vieram à tona as denúncias sobre os maus-tratos sofridos por crianças da escola Pequiá, no Cambuci, Zona Sul de São Paulo, algumas mães se reuniram para ver as imagens gravadas por uma das professoras — e foram juntas à delegacia registrar a ocorrência. 

As gravações comprovam as situações humilhantes, vexatórias e até de tortura psicológica sofridas por vários alunos pequenos, menores de 6 anos. Cada mãe se deparou com uma situação de violência, mas o choque pela descoberta foi ponto comum entre elas.

Quatro mães ouvidas pelo GLOBO contaram que confiavam plenamente na escola e que se surpreenderam ao ver as imagens e depois constatar com os próprios filhos o que acontecia. 

Os relatos incluem episódios em que os proprietários da escola enfiavam comida goela abaixo das crianças, deixavam horas de castigo na "sala escura", sentadas no vaso sanitário ou com a roupa suja de xixi. Ainda de acordo com elas, incentivavam que as crianças ridicularizassem umas às outras. E os pequenos eram ameaçados se contassem algo em casa, contou uma das mães.

Leia a seguir trechos das entrevistas conferidas ao GLOBO após a formalização da denúncia, por uma professora que pediu demissão e levou o caso às mães. A Justiça decretou prisão temporária dos proprietários da escola, que ficaram um dia foragidos e foram encontrados na noite desta terça-feira.

'A dona da escola obrigava as outras crianças a chamarem minha filha de gorda, de burra, de feia'

L., analista financeira (35 anos) e mãe de um menino de 8 anos e de uma menina de 7:

"O dono da escola é nosso amigo de infância. A gente morava na mesma rua, meu marido soltava pipa com ele. Quando deixei meus filhos nesta escola, há cinco anos, fiz de olho fechado. No ano passado, resolvi tirá-los depois de descobrir que minha mais nova não estava cadastrada no sistema da Secretaria de Educação. Para o Estado, ela não frequentava escola e eu poderia perder até a guarda dela. Na última terça, soube pela mãe de uma das vítimas o que acontecia ali. Foi decepcionante, um choque. Cheguei em casa e chamei meus filhos para conversar.

A menina é uma criança especial de alma. Ela é amorosa, sensível, chora se está feliz e triste. Quando chorava, ela era colocada no meio de uma roda no pátio, e a outra dona obrigava as outras crianças a chamarem ela de gorda, de burra, de feia. Ela ficava de castigo na sala escura. Ficou tanto tempo uma vez que deitou e dormiu. 

O menino, que ficava em período integral, me disse que várias vezes não queria comer toda a comida do prato e o dono da escola inclinava a cabeça dele para trás, forçando a abrir a boca, e enfiava goela abaixo. Ele chegou a ficar quase o dia todo na sala escura. Hoje consigo entender alguns comportamentos deles. 

Como quando ela, com cerca de cinco anos, disse que queria fazer regime porque estava gordinha. Ou o fato de ele ser compulsivo por comida. Se eu coloco um quilo de comida no prato, ele se força a comer tudo".

'Você dá amor e carinho para depois vir uns loucos maltratarem seus filhos'

C. 37 anos, nutricionista, mãe de um menino de 8 anos e de uma bebê de 1 ano e meio

"Os donos eram amigos de infância do meu marido, eu confiava neles cegamente. Meu filho estuda lá desde os dois anos. Quando a estagiária reuniu os pais para contar, meu marido disse: "Não deve ser nada". Mas eu segui minha intuição de mãe e fui. Você dá amor e carinho para depois vir uns loucos maltratarem seus filhos. Quando vi os vídeos, não acreditei que poderiam ser tão monstros. Minha bebê era obrigada a guardar os brinquedos ajoelhada. Num dos vídeos, a dona da escola pega ela de forma agressiva e ainda a chuta. Faziam ela dormir sentada. Ela começou a ficar estranha, irritada, nervosa. Como não fala direito, eu não entendia. Pensava: "Devem ser os dentinhos nascendo".

Ela chegava tão desesperada de fome que, além de jantar, tomava quatro mamadeiras de 270 ml na madrugada. Como eu iria saber que eles não davam comida para ela? Meu filho, até hoje, tem medo de escuro e não dorme sozinho. Achava que era da idade, até descobrir o quarto escuro do castigo. Quando soube, liguei para o dono da escola e o confrontei. Ele disse que faziam "umas brincadeiras" com as crianças. 

Agora consigo entender a rotatividade de funcionários e de outros alunos. Falei para ele: "Vocês são dois psicopatas". Ele me pediu desculpas. Estou com crise de ansiedade, passei na psiquiatra porque não estava conseguindo dormir. Não tenho medo de mostrar o rosto. Só quero que outras crianças não sofram o que meus filhos passaram".

"Fomos ver outras escolas, e ele pergunta: 'Mamãe, nessa escola eu vou poder almoçar?'"

D., 31 anos, especialista em importação, mãe de um menino de 6 anos

"Meu filho ainda estava aprendendo a junção das letras e teve que apresentar um trabalho para todo mundo no pátio. Como não conseguia ler, afinal, ainda estava aprendendo, foi submetido a uma situação vexatória pela professora. Na semana seguinte, chorou todos os dias, sonhava com a professora, que também é a dona da escola. Dizia que ela gritava muito. Se ele ia brincar, se ele ria muito, se não comia tudo, era colocado de castigo. Ou então forçado a comer, e passava mal. De repente passou a querer levar só duas bolachas e um suco para a escola. Fazia isso porque não tinha tempo para comer.

Era um dos que mais sofriam com gritos, constrangimentos, humilhações, principalmente nos momentos de provas e trabalhos. Era chamado de "preguiçoso", "mimado". Nas reuniões, diziam que eu que estava errada, que eu não podia ser tão "mole", dar tanto amor ao meu filho. Ele também via muito sofrimento dos colegas que não conseguiam segurar o xixi. Eles eram colocados em bacias com a própria urina, ou nus na frente das outras crianças e chamados de "bebezões”. Por medo, meu filho evitava fazer suas necessidades na escola, sofrendo uma série de problemas fisiológicos por isso.

Hoje estamos buscando outras escolas, e quando saímos das visitas ele sempre pergunta: "Mamãe, nessa escola eu vou poder almoçar?". Ele também pergunta se vai poder ir no banheiro na hora que quiser, se alguém vai ficar olhando. Ele sofre de ansiedade, coração fica acelerado, não consegue dormir sozinho. Também deixou de usar algumas roupas porque a dona da escola zombava do tênis colorido, da aparência dele. 

Ele quer ser uma criança alegre, colorida, mas fica com medo do julgamento das pessoas. Quando perguntei por que ele nunca disse nada, respondeu que o dono da escola dizia que, se contassem alguma coisa em casa, ele ia ficar sabendo. E que as crianças iam ser castigadas quando chegassem na escola. Vão ser anos de tratamento para a gente conseguir reverter os danos psicológicos. Se uma pessoa não gosta ou não sabe lidar com criança, não deveria ter uma escola. Só clamo por justiça".

"'Tá vendo como sua irmã é mentirosa, folgada, mal-educada?”. Humilhavam minha filha mais nova na frente da irmã maior"

M.C., mãe de duas alunas de 4 e 6 anos

"Não tenho família em São Paulo, então tive que confiar plenamente na escola. Como trabalho o dia todo, elas ficavam expediente completo. No início, minha mais nova adorava a professora. Mas neste ano começou a ficar mais agressiva, passou a dar socos, empurrões, a mostrar a língua para a irmã, responder para mim. Não é o tipo de ambiente da nossa casa. Também passou a não querer ir para a escola. Acordava de manhã, me agarrava pela perna, implorando pelo amor de Deus para não ir. E começou a pedir para colocar pouca comida no prato dela. Dizia que se tivesse muita comida ela iria vomitar. Depois fui descobrir que na escola enfiavam a colher goela abaixo e ela acabava vomitando. Ou vomitava de tanto chorar porque eles brigavam para ela comer rápido. Quando ela demorava, era colocada no maldito “quarto escuro”. Ficava de castigo por horas.

Também começou a pedir para colocar pouco lanche na lancheira. Eu não sabia, mas era para ela ter tempo de comer tudo rápido e não ficar de castigo. O dono da escola fazia a cabeça da minha filha mais velha contra a menor. Dizia: “Tá vendo como sua irmã é mentirosa, folgada, mal-educada?”.

Humilhava a mais nova na frente da mais velha. Tirei minhas filhas da escola, mas a menor ficou traumatizada. Continua dizendo para não colocar muita comida no prato para não vomitar. Fomos ver outra escola e ela não quis entrar, ficou com medo. Toda hora explico que o que aconteceu na escola antiga está errado. E vou fazer isso com toda a paciência do mundo, porque ela foi torturada psicologicamente naquele lugar".


Fonte: O GLOBO