Intenção de dobrar operações até o fim do mandato de Lula pode reduzir eficácia da política monetária do Banco Central. Mudanças no banco de fomento também afetam financiamento da dívida pública

A intenção do BNDES de dobrar as suas operações de crédito até o fim do mandato do presidente Lula tem chamado a atenção de especialistas e do Banco Central (BC) para a possibilidade dessa atuação reduzir a potência da política monetária.

Num momento em que o governo pressiona o BC para reduzir a taxa Selic, hoje em 13,75% ao ano, um menor poder de fogo desse instrumento significa juros mais altos por mais tempo. Além disso, a ideia do banco público de fazer títulos isentos de impostos para aumentar a captação pode acabar concorrendo com as emissões do Tesouro Nacional, a depender do formato dado à medida.

Sob o comando de Aloizio Mercadante, o BNDES quer sair do atual 0,7% do PIB de concessão de crédito para 2%, percentual que diretores do banco afirmam ser a média histórica da carteira da instituição de fomento. Nos períodos de maior desembolso, o banco já chegou a emprestar o equivalente a 4% do PIB.

A relação entre os desembolsos do BNDES e a Selic se dá porque o crédito é um dos principais canais de transmissão pelos quais a política monetária afeta os preços da economia. Uma vez que a mudança na taxa Selic atinge o custo de empréstimos, inibe o consumo e o investimento, reduzindo a inflação.

Por outro lado, o tamanho da parcela de crédito direcionado (quando uma instituição de fomento encaminha seus recursos a setores específicos, sejam segmentos industriais ou mesmo habitação, por exemplo) e subsidiado (emprestado a um custo menor do que os juros praticados no mercado) altera o alcance da política monetária. Na prática, é como se o crédito direcionado por um banco como o BNDES ficasse fora do alcance da Selic.

— Sem dúvida tem um impacto. A política monetária hoje está em campo restritivo para deflacionar a economia. Se um morde e outro assopra, não ajuda. O Banco Central está tentando restringir o crédito, e o BNDES está tentando aumentar, isso diminui o potencial da política monetária — afirma o chefe de pesquisa econômica para América Latina do Goldman Sachs, Alberto Ramos.

Para ele, o que mais preocupa é voltar uma política agressiva de concessão de crédito com taxa subsidiada e direcionada, sem observar os fundamentos da economia.

— Será uma questão de intensidade — diz Ramos.

Freio com menos potência

Em audiência no Senado na última quinta-feira, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, fez o alerta. Afirmou que 42% do crédito da economia são direcionados e, portanto, não estão sob o impacto direto da atuação do BC. Nos países emergentes, a média é de 6%.

— É como se o Banco Central pisasse no freio, mas o freio tivesse menos potência. Ou como se a gente tivesse uma tubulação que estivesse um pouco entupida — disse o chefe da autoridade monetária.

Gustavo Sung, economista-chefe da Suno Research, explica que o Brasil já tem uma taxa neutra de juros alta, por conta de caraterísticas locais. E ela aumenta quando o crédito subsidiado sobe. A taxa neutra é o nível de juros que não acelera nem desacelera a inflação.

— Quanto maior o crédito direcionado ou a taxa subsidiada, mais a taxa de juros precisa ser elevada para ter efeito — disse Sung.

Outro ponto que tem chamado atenção de economistas é sobre a mobilização do banco para emitir títulos isentos de impostos, nos moldes de uma Letra de Crédito Imobiliária (LCI) ou Agrícola (LCA). É uma forma de depender menos do Tesouro e, ao mesmo tempo, ampliar suas operações.

Nesse ponto, a preocupação é sobre uma possível concorrência com as emissões do próprio Tesouro para bancar a dívida pública. Isso porque um título do BNDES seria “quase” soberano, mas livre de impostos e disputando liquidez com emissões federais.

— Com certeza tem uma concorrência, mas claro que as captações do Tesouro são muito maiores. No fim, a União acaba atuando como um garantidor, é como se a União estivesse emitindo um título — considera Tiago Sbardelotto, economista da XP.

Nos bastidores, a Fazenda tenta minimizar. Integrantes da equipe de Fernando Haddad afirmam que as emissões do BNDES tendem a ser baixas, embora não esteja claro ainda qual será o montante que será colocado no mercado. Além disso, veem que as taxas de juros estão mais alinhadas com o mercado.

Entre outras ações, o BNDES pode atuar com subsídios financeiros e creditícios. Os subsídios financeiros são aqueles que têm desembolso do Tesouro, a fim de completar a diferença entre o que o credor recebe e o que o mutuário paga.

Já os creditícios são aqueles em que não há desembolso, sendo calculados por meio da diferença entre o custo de captação de recursos pelo Tesouro e o que a autarquia recebe pelos empréstimos que faz ao BNDES.

Trava no arcabouço fiscal

Alexandre Manoel, economista-chefe da AZ Quest, pondera que a possibilidade de subsídios financeiros foi bastante reduzida por conta do novo arcabouço fiscal, proposto pelo governo federal e em discussão no Congresso.

— Pelo arcabouço fiscal, a expansão do BNDES concorreria com as demais despesas do governo, como saúde e educação — disse Manoel.

O arcabouço diz que uma eventual capitalização do banco fará parte dos limites da regra fiscal e vai concorrer com outras despesas. É uma restrição inclusive maior que o teto de gastos, que colocava essa capitalização como exceção.

Para aumentar os benefícios creditícios, seria preciso mudar a TLP, taxa adotada pelo BNDES hoje e mais alinhada a indicadores de mercado. A antiga TJPL era mais subsidiada.

— Para vislumbrar uma política para frente, o que o mercado vai prestar atenção é em mudanças na TLP, que eu creio que vai gerar sinais muito ruins se forem muito significativas — afirma Manoel.


Fonte: O GLOBO