Abandono de ano-calendário como referência pelo Banco Central ganha fôlego, já foi citado por Haddad e Campos Neto, e pode ser aprovado no mês que vem

Em vigor no Brasil desde 1999, o sistema de metas de inflação pode passar pela sua primeira mudança estrutural no terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Crescem as expectativas de que, na próxima reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN), em junho, o país abandone a meta definida para o chamado ano-calendário, ou seja, de janeiro a dezembro, e passe a ter como referência prazos não definidos, em uma espécie de “meta contínua”.

Na prática, o Banco Central (BC) buscará sempre atingir a meta em um período entre 12 a 18 meses à frente, sem pensar mais em alcançar o objetivo no calendário fixo entre janeiro e dezembro de cada ano.

A mudança colocará o Brasil mais próximo de países que também adotam o sistema de metas no mundo. Segundo estudo feito pelo atual diretor de Política Econômica do BC, Diogo Guillen, de 26 países pesquisados, apenas o Brasil e a Tailândia seguem prazos definidos pelo ano-calendário, informou esta semana o blog da colunista do GLOBO Míriam Leitão.
  • O sistema de metas de inflação foi criado na Nova Zelândia, em 1989. No início, o BC neozelandês buscava levar a inflação para entre zero e 2% no médio prazo. A meta atual é um intervalo entre 1% e 3%.
  • O Federal Reserve, o BC americano, busca inflação em torno de 2%, a ser alcançada “ao longo do tempo”.
  • O Banco Central Europeu (BCE) adotou, em 2021, uma meta de 2%, a médio prazo.
  • Países em desenvolvimento, como Chile, Colômbia e México, têm meta de inflação em torno de 3%.
Na última semana, tanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quanto o presidente do BC, Roberto Campos Neto, defenderam rever o uso do ano-calendário como referência. O CMN é composto por Haddad, Campos Neto e pela ministra do Planejamento, Simone Tebet. No mercado, a alteração em junho já é dada como certa.

Mas não é só o prazo de referência que é alvo de críticas por parte dos economistas nos parâmetros usados pelo BC. Entre os países que adotam sistemas de metas de inflação, há variações em pelo menos dois outros aspectos: a meta de inflação em si e as sondagens usadas para medir as expectativas de inflação.

No Brasil, o sistema de metas foi implementado em 1999, no segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Quando o regime cambial usado desde o início do Plano Real foi abandonado, houve uma maxidesvalorização do real e cresceu o temor da volta da hiperinflação.

Com Arminio Fraga à frente do BC, a opção foi usar o método criado dez anos antes na Nova Zelândia e que passou a ser recomendado por organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI). O sistema de metas de inflação é hoje referência para as principais economias do mundo, como EUA, Reino Unido, países da zona do euro, Japão, Austrália e Canadá.

A lógica do modelo é ter um controle mais efetivo das expectativas de inflação. Quando o BC recebe um mandato em que é obrigado a levar a inflação a um determinado patamar, os agentes econômicos passam a incorporar esse número nas suas projeções. E isso torna mais fácil para o BC controlar a inflação, evitando aperto maior nos juros para desacelerar a economia.

Segundo estudo divulgado em janeiro pelo FMI, esse controle das expectativas fez com que a inflação tivesse forte queda logo nos três primeiros anos após a adoção do modelo em 11 países pesquisados, incluindo o Brasil. Por isso é tão importante, além do prazo e da meta da inflação em si, o controle das expectativas dos agentes econômicos.

Sem efeitos pontuais

O economista Sérgio Werlang, ex-diretor de Política Econômica do BC e um dos “pais” do sistema de metas no Brasil, diz que é “natural” um aprimoramento do regime e defende a adoção da meta contínua:

— É bem-vindo acabar com o ano-calendário. Assim, a cada mês, olhando para os 12 meses para trás, o BC verifica se está dentro do intervalo. Se não estiver, continua apertando a política monetária. Acho muito melhor do que ter uma data específica, pois pode haver alguma questão conjuntural que fez cair muito ou subir muito (a inflação) naquele último mês.

No Brasil, a meta de inflação estipulada para este ano é de 3,25%, com uma margem de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Com a inflação acumulando alta de 4,18% em 12 meses até abril, o BC tem alegado que é preciso que as expectativas do mercado convirjam para a meta antes de baixar os juros, atualmente em 13,75% ao ano.

Na Nova Zelândia, quando foi criado, o banco central do país buscou levar a inflação para uma meta entre zero e 2% no chamado “médio prazo”, ou seja, sem data definida. Desde então, a principal alteração aconteceu nas margens da meta em si, que atualmente precisam estar entre 1% e 3%.

Já o Banco Central Europeu (BCE) passou a adotar, a partir de 2021, um sistema em que busca uma inflação “estrita” em 2%, também no chamado “médio prazo”. Desde 2003, a instituição adotava a premissa de uma inflação “abaixo, mas perto de 2%”.

Nos EUA, em agosto de 2020, o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) definiu que seu parâmetro de inflação seria de 2% “em média”, o que deveria ser alcançado “ao longo do tempo”, ou seja, com grande flexibilidade para atingir a meta. Antes, o Fed não buscava um número específico, mas informalmente os economistas entendiam uma taxa ao redor de 2%.

Luis Otávio Leal, economista-chefe da G5 Partners, também concorda com aprimoramentos no sistema de metas do Brasil. Mas pondera que não seria prudente elevar a meta, como chegou a sugerir o presidente Lula em janeiro:

— No caso do Brasil, é muito melhor estabelecer uma determinada meta no horizonte da política monetária, que seria em mais ou menos 18 meses. Acho que deixar uma meta maior, de 4%, por exemplo, em algum lugar do tempo, é muito frouxo, o mercado não iria gostar. A partir do momento em que você não diz o prazo, há uma flexibilidade muito grande, sem dizer que está descumprindo.

Críticas ao Focus

Outra discussão em torno do sistema de metas é o “peso” dado ao Boletim Focus como fonte para o BC sobre as expectativas de inflação. A crítica é que o relatório semanal com a média das projeções de cerca de cem instituições financeiras, como bancos e consultorias, representaria só a “Faria Lima” e poderia estar superestimando a inflação para beneficiar rendimentos com a alta dos juros.

Campos Neto diz que há estudos para incorporar projeções de empresários, mas nega a tese de que o mercado joga a previsão de inflação para cima propositalmente. Em entrevista recente à GloboNews, ele lembrou que, nos EUA e também aqui no Brasil, há sondagens de inflação com consumidores que geralmente trazem números mais altos do que os do mercado.

Viés nas expectativas

Já Tony Volpon, ex-diretor do BC, avalia que as expectativas dos agentes econômicos podem ser “enviesadas” dependendo do contexto macroeconômico. A lógica é simples: períodos de otimismo geram expectativas positivas, e os de pessimismo levam às negativas:

— Quando você passa por um período de inflação muito alta, normalmente as expectativas ficam exageradas. Então, o BC poderia reconhecer que há um certo viés no que o Focus está projetando e ter uma visão mais crítica sobre isso.

Ele vê como necessária uma reforma do Focus, tomando como referência o Fed, dos EUA, que usa um indicador comum de expectativas, reunindo diferentes setores, e não só o mercado financeiro. Na lista estão também as expectativas de consumidores, empresários e acadêmicos.

Embora o Focus não seja restrito — qualquer instituição especializada pode enviar projeções ao BC —, a maioria dos agentes que alimentam o relatório é do mercado financeiro. A lista não é pública.

De todo modo, o BC tem enfatizado que observa, primordialmente, as seguintes dimensões para determinar a política monetária: inflação corrente, capacidade de o país crescer sem gerar inflação e expectativas inflacionárias.

João Victor Issler, professor da FGV EPGE, discorda de que haja “superestimação” das expectativas de inflação por parte do BC na hora de definir os juros. Para ele, o histórico recente mostra o contrário:

— A base de dados do Focus tem sido usada em diversos estudos. Em minha experiência com essa base, existe de fato um viés quando usamos a mediana das expectativas dos agentes e confrontamos com a inflação observada. Os agentes econômicos na base Focus subestimam a inflação.


Fonte: O GLOBO