Acordo de Paz assinado com as Farc em 2016 previa redistribuição de propriedades rurais, mas projeto não vingou e 0,4% da população ainda detém 46% dos terrenos

Por mais de 20 anos, a agricultora Milce Flores não podia dizer, com toda a certeza, que de fato morava em sua casa, em uma propriedade rural em El Carmen de Bolivar, no norte da Colômbia. 

Por se tratar de uma das regiões mais violentas da guerra no país vizinho entre as forças do governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), ela passava grandes temporadas fora entre os anos 1990 e 2010. E, quando voltava, tinha medo das minas terrestres e dos explosivos que eram deixados pelo terreno, onde ela hoje planta mandioca, inhame, manga e milho em 21 hectares:

— A gente vinha aqui [à zona rural] com medo. Chegávamos de manhã bem cedo, e no começo da tarde já voltávamos para a cidade. A gente plantava só no quintal de casa, porque não podíamos ir muito longe. Vivíamos com muito medo. Era tudo muito perigoso, a violência, as minas... — disse ela, hoje com 70 anos.

Agora seu município de 70 mil habitantes é oficialmente “pacificado” e limpo:

— A desminagem nos beneficiou muito. Agora estamos livres, podemos ir e vir nos nossos campos, podemos trabalhar sem medo a terra — começou a contar ao entrar em sua casa, uma construção simples de madeira e palha, ao fim de um caminho cercado de flores. — Mas claro que eu tenho receio de as coisas piorarem de novo. Eu vivi aquele tempo.

Reforma agrária

As ações de desminagem humanitária na cidade — que integra a região conhecida como Montes de Maria — só começaram em 2019 e, desde então, já devolveram à população 359,9 mil m2 de terra e neutralizaram 154 minas. O trabalho segue em curso, comandado pelo Batalhão de Desminagem e Engenheiros Anfíbios (BDIAN) das Forças Armadas da Colômbia.

Perto da casa de Milce Flores, a cerca de 15 minutos de caminhada, encontra-se uma área perigosa confirmada (APC), como são denominados oficialmente os campos em que há minas implantadas. Lá funciona a Operação 169, Linha 1, onde nove militares trabalham atualmente na limpeza de um lote de 191 metros quadrados, a porção restante de um terreno de 3.191 m2 que teve suas atividades de liberação iniciadas em 17 agosto do ano passado.

Selo especial

Com o retorno dos agricultores para as suas terras, o governo precisou investir no ordenamento das propriedades rurais. Em El Carmen de Bolivar, um importante centro agrícola do país, a prefeitura conta com financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e suporte da Agência Nacional de Terras, desde setembro de 2022, para fazer a varredura patrimonial após o processo de desminagem humanitária e identificar todas as pessoas que moram informalmente em propriedades que alegam ser suas. 

Segundo Leandro Sandoval, gerente de projeto da missão, quase 40% do município já foram vistoriados até o momento. Ao fim do processo, as pessoas que atenderem aos pré-requisitos legais receberão o título de propriedade.

— A meta do governo é regularizar 7 milhões de hectares. Já temos listadas 5 mil propriedades rurais, mas nossas projeções chegam a quase 10 mil. Muito provavelmente, conseguiremos regularizar cerca de 3 mil desses imóveis — disse Sandoval.

Em Cubarral, no departamento de Meta, um grupo de 11 mães solo se juntaram em 2020 para criar a associação Mujari, que cultiva café e cacau em terras liberadas pelo Estado. Elas também produzem cosméticos e doces a partir de frutas, açúcar mascavo e cúrcuma oriundos da região. Antes de chegarem a mercados próximos, todos os produtos recebem um selo especial que atesta sua origem em uma terra onde antes havia contaminação por minas antipessoal, como valorização do produto.

— O trabalho que fazemos com a comunidade no dia a dia não é só para livrar o território da suspeita de contaminação por minas, mas também para melhorar a qualidade de vida das pessoas — disse Alejandro Torres, um líder de desminagem humanitária colombiano que assessora o projeto. — Neste momento, estamos em processo de criação de uma loja virtual para ajudar a alavancar as vendas da Mujari.

Projetos como este também estão presentes nos departamentos de Antióquia, Guajira, Santander, Boyacá, Risaralda, Caldas, Caquetá, Nariño, Vale do Cauca, Cauca e em alguns setores de Putumayo que oferecem segurança para a operação, acrescentou Torres.

Os acordos de paz assinados em 2016 previam uma reforma agrária em 170 municípios, onde haveria a distribuição de títulos de propriedade rural. Mas na prática nunca houve um compromisso real para isso, afirma Pablo Parra, representante do Serviço de Ação Antiminas das Nações Unidas (Unmas) na Colômbia.

— Quase 80% do território colombiano já passaram pelo processo de limpeza de minas terrestres, mas a falta de coordenação política do último governo fez com que praticamente nada acontecesse com essas terras. O povo não teve apoio para utilizá-las, não houve investimento público — aponta Parra. — Hoje a Colômbia conta com 9 milhões de deslocados internos. 

O que estamos tentando é que o governo se concentre em soluções duráveis para essas pessoas, que haja uma destinação adequada para essas terras, não apenas a retirada das minas terrestres.

Concentração fundiária

Uma das promessas do novo governo, chefiado por Gustavo Petro, um ex-guerrilheiro e o primeiro presidente de esquerda do país, é justamente a reforma agrária. Segundo o diretor da Agência Nacional de Terras, Gerardo Vega, a meta é entregar três milhões de hectares a famílias sem terra ou com pouco acesso a elas e formalizar a posse de mais sete milhões. Os desafios são enormes: apenas 0,4% da população colombiana detém 46% das terras rurais do país.

— O Brasil tem condições de apoiar a implementação de qualquer acordo a que se chegue e também dar grandes contribuições em termos de recuperação, reconstrução e desenvolvimento social — disse o embaixador do Brasil na Colômbia, Paulo Estivallet de Mesquita.

Mas enquanto a reforma agrária ampla não ocorre de fato na Colômbia, sobrevive o orgulho daqueles que trabalham no processo de liberação das terras:

— É um processo que há muitos anos ajuda a restaurar direitos e a devolver aos cidadãos o lugar de onde nunca deveriam ter saído — disse o major Alberto Quintero, que comanda um batalhão de desminagem humanitária na região de El Carmen de Bolivar.


Fonte: O GLOBO