Em janeiro, as taxas de área desmatada na Amazônia se reduziram, mas em fevereiro houve alta recorde; nebulosidade no radar e herança de Bolsonaro são alguns dos motivos listados

Apesar das mudanças na política ambiental, o novo governo federal ainda levará tempo até ter resultados concretos na curva do desmatamento na Amazônia, explicam especialistas. Nos dois primeiros meses do ano, o Brasil teve queda das taxas em janeiro, mas aumento em fevereiro, com direito a recorde na série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

Se de um lado a "herança maldita" da gestão de Jair Bolsonaro no setor e a ascensão do crime organizado na Amazônia são desafios importantes, o governo tem agora, em comparação com o primeiro mandato de Lula, um Ibama mais estruturado, legislação mais rígida e mais possibilidades de apoio internacional, apontam os pesquisadores.

Em janeiro, o sistema Deter do Inpe registrou uma queda de 61% nos alertas de desmatamento, em comparação com o mesmo período de 2022. No entanto, em fevereiro os números se inverteram, e houve um aumento expressivo, de 62%. A taxa de 322 km2 colocou fevereiro de 2023 na liderança da série histórica de alertas de desmatamento, iniciada em 2015, em meses de fevereiro.

Após os dados, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva chegou a citar "uma espécie de revanche às ações" de fiscalização que o governo vinha tomando na Amazônia, como a operação de remoção dos garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. Outra explicação para o alto número de fevereiro seria uma entrada de alertas represados dos meses anteriores. Como o início de ano é um período de chuva e muita nebulosidade na Amazônia, o mapeamento por satélite fica prejudicado.

— Como caiu em janeiro e depois subiu em fevereiro pode ter acontecido de os alertas não terem sido registrados pelo sistema por causa das nuvens. E aí só em fevereiro foram identificados — explicou Mariana Napolitano, gerente de Conservação do WWF-Brasil. 

— Esse início de ano é um período muito curto e de muita chuva, o que prejudica a análise. Por enquanto não conseguimos falar de tendência nem de aumento e nem de queda, é cedo. Não vai reverter todo o desmonte do dia para a noite.

Os dados acumulados, porém, mostram que o cenário está parecido com o do ano passado. De primeiro de janeiro a 10 de março de 2023, houve alertas de 567 km2 de desmatamento, valor 21% menor que os 717 km2 registrados no mesmo período de 2022. Apesar da redução, é um patamar muito alto de desmatamento, alertam os especialistas.

Nesse contexto, é esperado que o próximo resultado do Prodes, mapeamento do Inpe que registra tudo o que foi desmatado de agosto a julho do ano seguinte, apresente um resultado negativo. Como os alertas estão altos desde o ano passado, a tendência é que o número consolidado seja de aumento do desmatamento. Os especialistas explicam que somente no Prodes do ano que vem é esperada uma mudança na curva.

— A governança ainda não voltou na Amazônia, o crime ambiental continua atuando na floresta. O novo governo está tomando atitudes para reverter isso, só que vai demorar ainda — afirma Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima.

Segundo Astrini, é preciso esperar pelo menos quatro meses de taxas para conseguir identificar uma tendência na curva de desmatamento. Antes disso é difícil saber o quanto há de influência da nova gestão nos números.

— O governo influencia colocando fiscalização no campo, prendendo líderes de quadrilhas. O problema é que o Ibama só tem 300 fiscais à disposição, é preciso entrar mais recurso. O Fundo Amazônia só foi liberado agora, por exemplo. Antes estávamos na inércia, agora o governo vai ter que trocar o pneu com o carro andando — afirma Astrini. — É um planejamento de médio a longo prazo.

Cenário diferente de 2003

Ao assumir a presidência pela primeira vez, em 2003, Lula também encontrou um cenário de alto desmatamento na Amazônia. E as taxas só caíram a partir de 2004, quando então iniciou-se uma nova tendência na curva. Até 2012, já no governo Dilma, houve uma redução de 80% do desmatamento no Brasil.

Naquela época, o país possuía uma estrutura de estado ainda precária em relação a ações de combate ao desmatamento. Hoje, apesar do número defasado de pessoal, o Ibama possui estrutura mais robusta, com maior expertise, além de uma legislação mais rígida e completa à disposição para cumprimento da fiscalização. 

Outra vantagem é o interesse internacional no financiamento ao Fundo Amazônia. Nos últimos meses, muitos países da Europa e os EUA vêm dando sinalizações de apoio financeiro, e abriram negociações com o Brasil.

Por outro lado, hoje o governo enfrenta contextos mais difíceis, como, por exemplo, a presença de facções do crime organizado na grilagem de terra e garimpos ilegais. Nos últimos anos, com a estrutura de fiscalização precarizada e a paralisação do Fundo Amazônia, além de outras medidas do governo Bolsonaro, as possibilidades de resposta do estado aos ilícitos ambientais tornaram-se mais escassas.

As ações imediatas, de operações no campo, poderão trazer resultados positivos. Mas para serem de fato exitosas é preciso elaborar um plano que identifique as áreas prioritárias, como o que foi feito em 2004 no lançamento do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM), que será revisado e atualizado nos próximos meses.

—O governo vai ter que pegar as 20, 30 maiores localidades de desmatamento e traçar um plano para esses lugares, junto com as polícias militares de cada estado. Assim, coloca a fiscalização no campo para prender mandantes, bloquear contas bancárias e fechar cartórios que facilitem a grilagem de terra. Quando a gente vê esse movimento acontecendo, a curva de desmatamento começa a diminuir logo em seguida — diz Astrini.

O aumento da fiscalização foi uma promessa do presidente Lula, e as operações estão sendo colocadas em prática. Esse tipo de ação consegue trazer números positivos, mas a taxa de desmatamento zero só será alcançada com o desenvolvimento de um novo modelo econômico, sustentável, que favoreça a floresta de pé na Amazônia, afirma Astrini.

— Se não substituir a economia do desmatamento por outra economia, basta um Bolsonaro ganhar a eleição que o desmatamento volta. Comando e controle é o analgésico, mas não a cura. Precisamos gerar economia com a floresta viva, esse passo é muito mais longo. 

Qual o plano diretor para a Amazônia hoje, por exemplo? Não existe. Precisamos definir onde pode ter agricultura e onde não pode. 

O único plano que já tivemos para a Amazônia foi na Ditadura, em que se promoveu o desmatamento, sob o lema de vencer o "inferno verde" — explica Astrini. — Hoje o crime ambiental consegue ser até parte relevante do PIB de uma cidade. O cidadão que está na ponta só quer dinheiro para comer, se ele tiver opção de atividade legal, ele vai preferir.

Diretor interino e pesquisador sênior do IPAM, Paulo Moutinho explica que hoje a dinâmica do desmatamento mudou, em relação ao primeiro governo Lula. Agora, o principal alvo é a floresta pública, o que justifica a demanda de ambientalistas pela destinação de terras públicas a unidades de conservação ou terras indígenas, o que aumenta o poder de proteção da área.

—Destinando para conservação, é possível em dois anos derrubar pela metade, ou mais, as atuais taxas de desmatamento — diz Moutinho, que também defende a elaboração de um plano diretor para a Amazônia. 

--É preciso avançar com o plano de desenvolvimento sustentável. Uma bioeconomia genuinamente amazônica também poderá trazer alternativas econômicas importantes. E tudo isto sem ter que afetar a produção de commodities, pois há muita terra já desmatada que pode ser recuperada para uso agrícola. 

O Brasil, é o único país a fazer esta conciliação entre preservação ambiental com produção agrícola com o fim do desmate na Amazônia. Mas, é preciso demonstrar nos próximos anos que há vontade política.

Preocupação no Cerrado

Se os números mostram um desmatamento acumulado até menor em 2023 do que em 2022 na Amazônia, ainda que em patamar alto, no Cerrado as taxas continuam em ascensão. Em números absolutos, o que se desmatou no Cerrado foi quase o dobro na Amazônia, nos últimos dois meses, e 80% acontece na chamada Matopiba, a fronteira da expansão agrícola, nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

—O aumento no Cerrado foi muito mais gritante, não dá para justificar só pelas nuvens. Já é um sinal de ritmo acelerado — afirmou Mariana Napolitano, da WWF-Brasil.

No ano passado, o Parlamento Europeu aprovou um veto à compra de commodities oriundos de área de desmatamento, e com isso foi delimitada uma área do Cerrado onde a exportação está proibida. Mas, após a medida, cresceu o desmatamento nas outras áreas não delimitadas, diz Napolitano.

— No último Prodes percebemos o desmatamento crescendo em áreas mais abertas do Cerrado, savânica, com baixa densidade de árvores e que ficaram fora da área da regulamentação europeia. O ritmo preocupa.

Ministério do Meio Ambiente promete novo plano neste mês

Procurado, o Ministério do Meio Ambiente respondeu que as ações de fiscalização do Ibama neste ano ocorreram num volume 150% maior que a média da última gestão e que várias ações estão sendo planejadas com "repercussão na taxa de 2023". 

O PPCDAm deverá ser concluído ainda neste mês e depois entrará em consulta pública, até ser lançado no fim de abril. "Não se muda a realidade de 4 anos de omissão e conivência com a ilegalidade em dois meses de governo", afirmou a pasta.

Em relação às linhas prioritárias, o ministério disse que irá "resgatar a coordenação e sinergia entre 19 ministérios no âmbito do monitoramento e controle ambiental, do ordenamento territorial, do fomento a atividades produtivas e dos instrumentos econômicos e normativos". Sobre o aumento da taxa em fevereiro, além do fator da nebulosidade, o Ministério do Meio Ambiente disse que possivelmente há "uma corrida em algumas regiões para consolidar desmatamentos".


Fonte: O GLOBO