Dinheiro dos viajantes estrangeiros corresponde a parte importante do orçamento do governo, que tenha superar uma longa e séria crise econômica

A divisão do governo egípcio que cuida do patrimônio arqueológico do país movimentou o setor de pesquisa nos últimos meses com uma série de descobertas noticiadas em tom monumental. 

O fraseado nos anúncios — quatro “tumbas de faraós”, uma cidade romana “completa” e uma múmia “coberta de ouro” — deixa arqueólogos um tanto quanto céticos, mas é resultado de um esforço legítimo do país para turbinar a área de pesquisa, dizem especialistas, e, de quebra, a economia.

A mistura de arqueologia com turismo não é algo que o governo está tentando esconder. Em 2019, os ministérios que cuidam dessas duas áreas foram fundidos em um só, e em meio à crise econômica que o país vive, o governo não tem poupado esforços para reerguer as indústrias hoteleira e de lazer para níveis pré-pandemia. O setor é vital para a economia e responde por cerca de 12% do PIB do país.

A série de anúncios bombásticos começou ainda no ano passado, com o anúncio da descoberta de um túnel que “poderia levar” à tumba de Cleópatra e Marco Antônio, figuras históricas que povoam o imaginário de pessoas pelo mundo. O local continuou a ser escavado e a tumba não apareceu ainda, mas a notícia rendeu grande exposição internacional dos sítios arqueológicos na região.

Para o arqueólogo Pedro Luiz Von Seehausen, do Museu Nacional/UFRJ, existe uma intenção clara do governo egípcio de dar mais visibilidade aos trabalhos recentes de escavação, mas o potencial de descobertas a serem feitas ainda no país é realmente grande.

— O anúncio sobre esse túnel foi mesmo uma coisa um pouco “imaginativa”, por assim dizer, porque a tumba da Cleópatra com o Marco Antônio não deve estar ali. É praticamente consenso que, muito provavelmente, ela está no distrito marítimo de Alexandria, ou seja, embaixo d’água — diz Von Seehausen. 

— Há intenção clara do Ministério do Turismo e Antiguidades de fazer esses anúncios para atrair atenção, mas isso não desqualifica esses achados todos, que são muito interessantes. O que está sendo descoberto em Luxor, por exemplo, é incrível.

Mesmo em descobertas que não precisariam de adjetivação para se destacar, o governo do Egito põe uma “pitada” a mais de tempero.

— Eu achei um pouco engraçado e estranho quando falaram em ter encontrado uma cidade romana “inteira” em Luxor — diz Von Seehausen. — Tebas (nome antigo da cidade) teve uma ocupação permanente e foi sendo reutilizada constantemente. O que eles descobriram lá foi uma parte da cidade.

O arqueólogo, que está no Egito para dar continuidade ao trabalho de colaboração do Museu Nacional em escavações na cidade, conta que ele mesmo já vivenciou uma descoberta inesperada no projeto em que trabalha. Em 2016, num sítio arqueológico onde se acreditava que todas as câmaras subterrâneas já haviam sido mapeadas, apareceu uma nova tumba.

'Carga sensacionalista'

Segundo a arqueóloga e divulgadora de ciência Márcia Jamille, do canal Arqueologia Pelo Mundo, um padrão que tem marcado os últimos anúncios é que eles nem sempre são feitos acompanhados de estudos ou relatórios científicos.

— Essas pesquisas são feitas por equipes qualificadas, mas a forma como estão trazendo para a gente tem mesmo uma carga mais sensacionalista — diz a pesquisadora. — Eles buscam sempre uma arqueologia mais lúdica, da “aventura” de encontrar uma múmia, isso tem me incomodado.

Pesquisadores estrangeiros geralmente evitam criticar a postura do Ministério do Turismo e Antiguidades porque não querem criar atritos que comprometam os acordos de colaboração. É comum na imprensa europeia ver críticas por parte de pesquisadores que pedem para não ser identificados.

Declarações mais diretas aparecem por parte de autoridades árabes, porém, e em ocasiões nas quais o uso de sítios antigos para promover turismo representa ameaça ao patrimônio arqueológico. Foi o caso de uma festa de música eletrônica no Templo de Hatshepsut, em Luxor, onde mais de 3.000 pessoas lotaram o sítio arqueológico para ver um show do grupo de DJs Adriatique. 

O egípcio Hossam Zaki, secretário-geral assistente da Liga Árabe, escreveu em tom crítico num site de rede social: “Por que permitiram um show de música barulhenta no Templo de Hatshepsut?”.

O arqueólogo-chefe do ministério, Magdy Shaker, se defendeu dizendo que “é possível realizar shows em sítios arqueológicos, mas não em todas os lugares dos sítios”, e afirma que especialistas em restauração não apontaram riscos.

O diálogo foi reproduzido pelo site Arab News em reportagem relatando que os hotéis de Luxor lotaram no final de semana que antecedeu a rave. Do ponto de vista do turismo, o evento foi um sucesso.

Discussões internas sobre preservação do patrimônio arqueológico interferem em outro assunto sensível: a repatriação de relíquias saqueadas. Há décadas o Egito faz um esforço diplomático para que peças como a Pedra de Rosetta (hoje no Museu Britânico) e o Busto de Nefertiti (no Neues Museum de Berlim) sejam devolvidas ao país. Qualquer incidente que resulte em dano a sítios arqueológicos pode interferir nessa demanda.

Colonialismo

Von Seehausen relata que nos últimos anos tem trabalhado com prazos mais curtos para que os sítios possam ser abertos à visitação, mas não crê que o governo do Egito esteja errado ao fazer isso. Críticas ao uso do patrimônio também podem se confundir com questionamentos à soberania do país.

— Por muito tempo, a egiptologia foi mesmo feita por muito colonialista e muito europeu, que perpetuavam alguns preconceitos — diz o pesquisador, que percebe uma dependência menor do Egito hoje de acolher cientistas estrangeiros para fazer escavações. — A gente vê que o governo egípcio está promovendo cada vez mais escavações sob responsabilidade deles mesmos, e isso é uma perspectiva “descolonial'.


Fonte: O GLOBO