Gestão Lula, que tem história com o país, difere de governos de esquerda e direita da região, como México, Uruguai, Colômbia, Argentina, Chile e Equador, que oferecem cidadania aos apátridas

No começo da década de 1980, o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva foi à Nicarágua e esteve em contato com dirigentes políticos de peso da região. Em um jantar na casa do escritor Sergio Ramírez — figura de proa da Revolução Sandinista que derrotou a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979, e vice-presidente do primeiro governo de Daniel Ortega (1985-1990) — o brasileiro conheceu, entre outros, o então presidente de Cuba, Fidel Castro.

Mais de 30 anos depois, o retorno de Lula ao Planalto despertou esperanças entre os críticos de Ortega, como Ramírez, alvos da repressão cada vez mais intensa do presidente, que reconquistou o poder em 2007. O silêncio do governo brasileiro sobre abusos do colega nicaraguense, entre eles a política de tirar a cidadania de opositores — repetindo algo que Augusto Pinochet (1973-1990) implementou no Chile — em palavras do escritor, “é tão incompreensível, tão impactante, que se ouve... É constrangedor”.

Enquanto governos — de esquerda e direita — da região se dispuseram a conceder cidadania aos apátridas nicaraguenses, entre eles Argentina, Uruguai, Colômbia, Chile, Equador e México, o Brasil de Lula, apesar do mal-estar que fontes do governo admitem que causam os atropelos antidemocráticos cometidos por Ortega, continua sem se posicionar. A repressão a opositores do governo está sendo ampliada. 

Numa cruzada de Ortega contra a Igreja Católica, 11 padres já foram levados à prisão, e em fevereiro, o regime decidiu libertar 222 dos 245 considerados presos políticos e deportá-los para os Estados Unidos, fazendo com que eles percam a cidadania nicaraguense por decreto, por “traição á Pátria”.

— Lula conhece muito bem a Nicarágua, e isso torna seu silêncio ainda mais difícil de entender. Eu, pessoalmente, estou desconcertado — admite Ramírez, hoje exilado na Espanha, em entrevista ao GLOBO.

Para Ramírez — ele somou à sua cidadania espanhola a colombiana e a equatoriana — que conhece Lula desde que o presidente brasileiro estava avaliando, segundo contou naquele jantar em Manágua, se deveria ou não iniciar uma carreira política, “a única coisa que poderia explicar o silêncio do Brasil seria seu envolvimento em algum tipo de mediação com o governo de Ortega”.

— Mas, que eu saiba, isso não está acontecendo.

De fato, segundo fontes brasileiras, não está. Procurado pelo GLOBO, o Itamaraty não respondeu.

— Lembro que em outra viagem a nosso país, no início da década de 90, Lula participou de um congresso da Frente Sandinista, que tinha perdido uma eleição. Naquele momento, em que nós discutíamos se nossa frente deveria fazer um giro autoritário ou não, o discurso de Lula foi a favor da democracia — comenta Ramírez, vencedor do Prêmio Cervantes de literatura.

O escritor também lembra que as palavras de Lula irritaram Ortega, que, na noite do congresso, não participou de um jantar com o convidado brasileiro.

— Ele sabe bem o que acontece na Nicarágua, por isso seu silêncio é constrangedor. O Brasil precisa se pronunciar não apenas pela Nicarágua, mas pela região. Esta é uma luta entre autoritarismo e democracia.

O Brasil não apenas está em silêncio: também decidiu, recentemente, não apoiar uma declaração proposta pelo Canadá sobre as ações antidemocráticas de Ortega na Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual a Nicarágua não forma mais parte. 

Semana passada, um Grupo de Especialistas que atua no âmbito das Nações Unidas apresentou um duro relatório sobre a repressão exercida por Ortega contra seus opositores, em Genebra. O governo brasileiro participou de conversas, mas tampouco se pronunciou.

O documento afirma que, após um ano de investigações in situ, é possível confirmar que a partir das manifestações de 2018 contra o governo “foram cometidos, e continuam sendo cometidos, graves violações e abusos dos direitos humanos” no país.

Entre estes abusos, determinou o grupo, podem ser mencionadas “execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, tortura, privação da nacionalidade e do direito a permanecer no próprio país”, em atos que seriam “crimes de lesa-Humanidade”, como assassinato, prisão, tortura, violência sexual, deportação forçada e perseguição por motivos políticos”. O relatório também acusa o governo de Ortega de ter “destruído o espaço cívico e democrático”, além de controlar “as altas autoridades dos Poderes Legislativo e Judiciário”.

Acompanhando ONGs e familiares das vítimas de Ortega em Genebra, o brasileiro Paulo Abrão, professor visitante na Universidade Brown e assessor da ONG Artigo 19, diz que “existe uma grande expectativa sobre o governo Lula e sua posição sobre a Nicarágua”.

— Não se pode fechar os olhos para estas violações. Estamos falando de violações do direito internacional e nacional porque, não podemos esquecer, temos, inclusive, uma vítima brasileira — frisa Abrão, em referência a Raynéia Lima, a estudante de Medicina brasileira assassinada em 2018, em Manágua.

O relatório do grupo de especialistas da ONU fez um chamado aos países que têm vítimas da repressão do governo de Ortega (EUA, Brasil e França) para que iniciem ações legais contra os responsáveis pelos crimes cometidos. Há duas possibilidades: que os países abram processos em suas jurisdições nacionais, ou que, como acontece na Argentina, que a Justiça de outro país investigue os supostos crimes cometidos na Nicarágua.

— Como são considerados crimes contra a Humanidade, pode existir a jurisdição universal, como aconteceu, por exemplo, com Pinochet — explica Abrão.

Enquanto o governo Lula continua em silêncio, o autor confesso do assassinato de Raynéia, confirmaram ONGs que investigam a situação na Nicarágua, está livre e recebendo um salário do Estado nacional. A brasileira foi reconhecida como vítima da repressão do governo de Ortega pela CIDH, organismo no qual o governo Lula pretende conseguir sua primeira importante vitória no âmbito da governança regional.


Fonte: O GLOBO