Duas mulheres viram anúncio e foram até o local tomar banho, trocar de roupa e descansar até o dia seguinte, quando os ônibus voltaram a circular na capital potiguar no início da manhã

Quando acordou na manhã de terça-feira, 14 de março, a produtora cultural Ariane Cavalcanti, 35, se deparou com uma enxurrada de notícias sobre a onda de violência instaurada no Rio Grande do Norte durante a madrugada. Ônibus queimados, repartições públicas atacadas e incêndios criminosos aconteciam em cidades espalhadas por todo estado.

Os ataques, que até a tarde de quarta-feira (15), haviam sido registrados em 24 cidades do RN, tiveram origem no sistema prisional, organizados pelo Sindicato do Crime, principal facção criminosa do estado. Os atentados levara à suspensão do funcionamento do transporte público, atendimentos em unidades básicas de saúde, repartições públicas e comércio. 

Nos shoppings e bairros comerciais de Natal, as ruas estavam desertas, mesmo com descontos e promoções organizadas para o Dia do Consumidor. Universidades públicas e privadas e escolas também tiveram as atividades interrompidas em função da insegurança. Até o momento, duas pessoas ficaram feridas nos ataques, ambas motoristas de ônibus.

Ao ver a notícia de que a frota de ônibus da capital potiguar seria recolhida após diversos ataques incendiários aos veículos na terça-feira, Ariane Cavalcanti não pensou duas vezes: proprietária do Belchbar, localizado na Zona Sul de Natal, abriu o Instagram do estabelecimento e postou um texto no qual comunicava a abertura das portas do bar para acolher todos que estivessem nas ruas ser ter como voltar para casa.

O ato de solidariedade ganhou projeção na internet, com mais de 3 mil visualizações no story postado por Ariane e centenas de compartilhamentos. A produtora cultural passou a noite acordada de prontidão, pronta para ouvir caso alguém chegasse ao estabelecimento em busca de abrigo.

Às 3 horas da manhã, ouviu palmas no portão: duas mulheres chegaram, após uma caminhada de mais de uma hora, vindas de outro bairro da cidade. 

“Eram duas mulheres que trabalhavam em locais diferentes, mas próximos, e estavam há horas esperando algum tipo de transporte para levá-las para casa, sem sucesso, debaixo da chuva. Uma delas viu o compartilhamento de alguém, e então elas decidiram vir até aqui”, conta Ariane.

No bar, as mulheres puderam tomar banho, trocar de roupa e se instalar para descansar até o dia seguinte, quando os ônibus voltaram a circular na capital potiguar no início da manhã. “Em uma situação como essa, de medo, de insegurança, é fundamental a gente distribuir solidariedade e pensar como podemos ajudar. 

Eu fiquei surpresa com a quantidade de elogios que recebemos nas redes sociais, porque para mim isso deveria ser algo natural, cotidiano. Os espaços precisam ser multifunção, eu acredito muito nisso”, relata Cavalcanti.

A situação vivenciada pelas duas mulheres que passaram horas à espera do transporte público se repetiu por todas as zonas de Natal na quarta-feira (15), quando mais uma vez os ônibus foram retirados de circulação após o registro de novos ataques contra veículos. 

Na avenida Salgado Filho, uma das principais de Natal, a reportagem do Jornal O GLOBO acompanhou a espera de mais de uma hora da população, sem qualquer sinal de transporte circulando nas ruas.

Funcionária do Restaurante Popular, Alaíde Pegado, de 59 anos, conta que mesmo diante da incerteza sobre como voltaria para casa, não podia faltar o serviço. Para voltar para casa, caminhou os 8 quilômetros que separam sua residência do Centro Administrativo do Estado, onde trabalha. 

O mesmo aconteceu com o aposentado João Xavier, de 71 anos, que também fez o caminho do Restaurante Popular à sua casa a pé. “Nem quem tem dinheiro pra uber está conseguindo pegar. E nós, que não temos dinheiro, ficamos sem opção: ou anda, ou espera até não conseguir mais”, disse Xavier.

Na quarta-feira, agentes da Força Nacional de Segurança chegaram ao Rio Grande do Norte após um pedido feito pela governadora Fátima Bezerra (PT) ao ministro da Justiça, Flávio Dino. Dino afirmou em sua conta no Twitter que planeja enviar 220 agentes para reforçar a segurança no RN, mas não descarta a possibilidade de mandar mais policiais caso a situação não seja controlada.

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Sesed/RN), no comparativo entre a madrugada de segunda-feira (13) até a quarta-feira (15), houve uma redução de 62% no número de ataques registrados. 

Até as 14h30, 39 pessoas suspeitas de participação nos atentados haviam sido presas e foram feitas apreensões de nove armas de fogo, 35 artefatos explosivos, oito galões de gasolina, drogas, dinheiro e munições.

A Secretaria de Administração Penitenciária do RN afirma que o sistema penitenciário está sob controle, sem registro de ocorrências internas. O secretário Helton Edi Xavier afirma que uma série de medidas administrativas foram tomadas e o sistema está sob monitoramento reforçado. Detentos suspeitos de envolvimento nos ataques foram isolados dos demais, e todas as visitas foram suspensas, incluindo as de advogados. 

Até o momento, uma pessoa suspeita de envolvimento nos atentados foi transferida da Penitenciária Estadual de Alcaçuz para um presídio federal. O secretário não descarta a possibilidade de novas transferências, e afirma que os protocolos reforçados de segurança nos presídios serão mantidos por tempo indeterminado, até que a situação seja controlada.


Fonte: O GLOBO