Há 20 anos no poder, presidente turco enfrenta cenário eleitoral inédito, com baixa popularidade e críticas severas até de eleitores fiéis em redutos historicamente conservadores

À medida que os dias passam e o número de mortos no terremoto de 6 de fevereiro na Turquia, que também atingiu a vizinha Síria, consolida-se como a pior tragédia no país em mais de 80 anos, o futuro do presidente Recep Tayyip Erdogan é posto à prova. Há 20 anos no poder, ele se prepara para enfrentar novas eleições em breve, mas num cenário adverso ao qual se habituou.

Com a popularidade em baixa, o mandatário tem sido alvo de críticas severas até mesmo entre eleitores fiéis em redutos historicamente conservadores.

Segundo sondagem divulgada há duas semanas pelo agregador independente de pesquisas políticas na Europa PolitPro, sua legenda, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP ), teve uma queda de 10 pontos percentuais nas intenções de votos em relação à última eleição, em 2018, caindo de 42,6% para 33% das intenções de voto, contra 25,5% do principal partido oposicionista, o Partido Republicano do Povo (CHP), que em 2018 teve 22,7% dos votos.

Em 1999, quando era prefeito de Istambul, a maior cidade do país, um tremor de proporções semelhantes atingiu o noroeste da Turquia e acabou pavimentando o caminho de Erdogan para Ancara, quatro anos depois, após se consolidar como o principal nome da oposição. 

Agora, o novo abalo sísmico põe em risco seu projeto religioso à frente do Executivo, em que vem revertendo a laicidade do Estado estabelecida há 100 anos pelo governo de Mustafa Kemal Atatürk (1923-1938).

— Erdogan já vinha lidando com a perda de popularidade nos últimos meses devido à crise econômica interna e tentava minimizar as críticas investindo no realinhamento com os países do Golfo e a Rússia para garantir suprimento de energia — explica Monique Sochaczewski, historiadora internacional especializada em Oriente Médio e professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IBP), acrescentando: — Mas o terremoto mudou tudo e colocou um ponto de interrogação sobre as eleições.

No mês passado, o governo decidiu antecipar o pleito de junho para o simbólico 14 de maio, data do centenário da República da Turquia, fundada por Ataturk. Mas, após a devastadora destruição causada pelo terremoto de 7,8 de magnitude, passou a defender o adiamento da disputa para 2024. A oposição, por sua vez, teme que a manobra tenha como objetivo evitar que Erdogan, acusado de negligência e resposta inadequada aos tremores, enfrente uma derrota nas urnas.

— O governo alega que precisa de tempo para reconstruir as infraestruturas dos locais atingidos pelo terremoto, mas muitos cientistas políticos argumentam que Erdogan estaria tentando ganhar tempo para encobrir provas de corrupção na relação de Ancara e do AKP com os empreiteiros — afirma Sochaczewski.

'Anistias' a construções irregulares

As regras de construção civil foram reforçadas na Turquia após desastres anteriores, incluindo o terremoto de 1999 na cidade de Izmit, que deixou mais de 17 mil mortos. Mas as leis, incluindo os padrões mais recentes estabelecidos em 2018, têm sido mal aplicadas. 

Além disso, o governo concedeu nas últimas décadas "anistias" periódicas após pagamento de multas, isentando no âmbito legal estruturas construídas sem os certificados de segurança exigidos, apesar dos alertas de diversos especialistas.

Em entrevista à BBC, a presidente do Sindicato das Câmaras de Engenheiros, Arquitetos e Urbanistas Turcos, Pelin Pınar Giritlioğlu, estimou que até 75 mil edifícios na área afetada pelo terremoto receberam “anistias”. 

Até o próprio Ministério do Planejamento Urbano reconheceu em 2018 que metade dos edifícios na Turquia não cumprem os regulamentos. Esses “perdões”, porém, continuam sendo concedidos, principalmente em períodos pré-eleitorais.

Outra crítica dirigida a Erdogan é que os serviços de emergência demoraram vários dias para chegar às províncias afetadas pelos tremores no sudeste do país, enquanto os sobreviventes tentavam retirar os parentes dos escombros utilizando, às vezes, as próprias mãos. Relatos de veículos independentes dão conta de que muitos dos soterrados morreram de hipotermia sem ter a chance de pedir ajuda aos socorristas.

De acordo com a AFP, o influente Exército turco não foi mobilizado de maneira imediata. Para manter a situação centralizada sob seu comando, o governo preferiu confiar as operações à agência pública de gestão de catástrofes, a Afad, que rapidamente se viu sobrecarregada pela dimensão da tragédia, chamada de “o pior desastre natural na Europa em cem anos” pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Nesse cenário de catástrofe, o próprio Erdogan reconheceu "deficiências" na organização das tarefas de emergência, mas alegou que ninguém poderia ter atuado de maneira melhor diante de um terremoto de 7,8 graus de magnitude, que aconteceu durante a madrugada e atingiu áreas urbanas. 

A tragédia, segundo último balanço da al-Jazeera, deixou até esta sexta-feira mais de 43 mil mortos, sendo 3.688 na vizinha Síria e 39.672 na Turquia — batendo o recorde de um tremor com magnitude equivalente que deixou mais de 30 mil mortos no país em 1939.

— Erdogan tem insistido em falas quase religiosas sobre o “destino”, depositando a culpa no “grande terremoto”, como se fosse algo inédito numa região que sempre sofreu com abalos sísmicos — comenta Sochaczewski. — Se essa narrativa vai colar, ainda não sabemos, mas, pela primeira vez, há uma insatisfação geral com o governo, mesmo em regiões tradicionalmente eleitoras de Erdogan, que também foram as mais atingidas pela tragédia.

Oposição fragmentada

Apesar do cenário desfavorável, Erdogan tem como vantagem o fato de a oposição turca ser bastante fragmentada. Segundo Sochaczewski, esse fato pode favorecer Erdogan nas urnas, ainda mais considerando que, ao longo das últimas duas décadas, o mandatário concentrou poderes, corrompeu instituições e silenciou críticos do governo, geralmente utilizando brechas na Constituição para dar um verniz de legalidade aos processos.

Por outro lado, nas últimas semanas criou-se uma expectativa de que a candidatura de Kemal Kilicdaroglu, o líder do Partido Republicano do Povo (CHP), a principal sigla de centro-esquerda do país originada com Atatürk, seja capaz de atrair o voto útil dos insatisfeitos caso as eleições ocorram dentro do prazo legal, até junho.

— É uma possibilidade, mas não podemos esquecer que Erdogan está no poder há 20 anos e controla toda a máquina pública. Até jornais locais supostamente independentes têm feito propaganda do governo após os terremotos. Erdogan também é muito carismático, ao contrário do Kilicdaroglu — explica a especialista.

A eleição turca deste ano foi chamada pelo colunista de opinião da Bloomberg Bobby Gosh de “a mais importante de 2023”, já que seu resultado determinará se o país seguirá um curso mais secular e liberal internamente e uma política externa mais previsível, ou continuará sob o autoritarismo de Erdogan, sua diplomacia enérgica e políticas econômicas pouco ortodoxas. 

Em qualquer um dos cenários, as consequências tendem a afetar todo o tabuleiro geopolítico da região, a partir de um alinhamento maior com Moscou ou o Ocidente.

“O que acontece na Turquia não fica apenas na Turquia”, disse Ziya Meral, membro associado sênior do Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança, com sede em Londres, ao site Al-Monitor, especializado em Oriente Médio. “A Turquia pode ser uma potência intermediária, mas as grandes potências têm interesse em sua eleição."


Fonte: O GLOBO