Ultrarreligiosa e mãe de 23 crianças, ela é acusada de comandar um sistema oficial de crianças ucranianas; nesta quarta-feira, informou que ela mesma adotou uma adolescente de Mariupol

Maria Lvova-Belova, num primeiro momento, parece alguém vivendo em estado de graça religiosa. Em julho, por exemplo, ela descreveu em seu perfil na rede social russa Vkontakte como dezenas de crianças ucranianas foram entregues a famílias em Moscou.

“Treze ervilhinhas, com roupinhas idênticas, nos esperavam na varanda do orfanato para irmos à Rússia para ficarem com mães e pais adotivos. E também para verem pela primeira vez irmãos e irmãs mais velhos de quem nem lembram mais. Porque órfãos de diferentes idades são criados em diferentes instituições. E só a instituição da família é capaz de reuni-los hoje”, escreveu a comissária presidencial da Rússia para os Direitos das Crianças.

“Existem pais em nosso país que estão prontos para receber cinco, sete, nove filhos.”

Não se sabe se essas crianças de fato eram ou não órfãs, mas há indícios fortes de que, além de serem adotadas por famílias russas, elas também estão sujeitas a pesados processos de propaganda para assimilarem uma identidade russa e apagarem suas raízes ucranianas.

Há registros de mais de 6 mil casos de crianças ucranianas, com idades entre quatro meses e 17 anos, que estiveram sob custódia da Rússia, de acordo com um relatório do Observatório de Conflitos da Universidade Yale financiado pelo governo dos EUA e divulgado na quarta-feira. 

Muitas foram para supostas colônias de férias e nunca voltaram para casa. A maioria é sujeita a uma suposta educação cívica semelhante a uma intensa doutrinação. Os casos começaram no início da guerra, há quase um ano, e, no mínimo até janeiro deste ano, continuavam a acontecer.

É Maria Lvova-Belova, que responde diretamente ao presidente russo Vladimir Putin, quem coordena as ações relacionadas às crianças e adolescentes nesses casos. Nesta quinta-feira, ela informou que ela mesma adotou uma menor ucraniana de 15 anos recém-chegada de Mariupol, cidade ocupada no leste.

— Agora eu sei o que significa ser mãe de uma criança de Donbass. É difícil, mas nós definitivamente nos amamos. Acho que podemos lidar com qualquer coisa — disse ela a Putin em comentários transmitidos na televisão. — Tudo graças ao senhor.

A jovem ucraniana ganha muitos irmãos: Lvova-Belova, de 38 anos, já tem outros 22 filhos, sendo cinco biológicos e outros 17 adotados. O ritmo de crescimento da família é acelerado: segundo uma reportagem da revista religiosa russa Foma, em 2019, eram só nove crianças.

A maioria das adoções aconteceu a partir de projetos para crianças abandonadas e com deficiência que desde 2008 ela comanda em Penza, cidade a 625 a sudeste de Moscou. Até então, tinha feito formação de maestrina e lecionava música.

Seu envolvimento com questões ligadas à infância se deu após ter os primeiros filhos naturais e descobrir que havia crianças abandonadas em maternidades e hospitais locais. Ao lado de Anna Kuznetsova, sua antecessora como comissária federal, começou a criar os próprios orfanatos, como a Casa da Verônica , o Quarto de Luís e o Novas Margens.

Em comum, as duas mulheres compartilham o fervor religioso. Lvova-Belova é casada com o padre ortodoxo Pavel Kogelman, um ex-programador que em 2019 adotou a vida sacerdotal aos 37 anos.

Por meio desses projetos, Lvova-Belova entrou na política. Em 2019, se filiou ao Rússia Unida, o partido de Putin. Em 2020, foi uma das selecionadas do projeto Líderes da Rússia, que oferece mentoria para figuras que desejam subir no governo federal. Naquele ano, entrou para um conselho Executivo local e, em 2021, foi nomeada por Putin comissária presidencial para os direitos da criança.

Para as crianças ucranianas, lançou um programa chamado “O Dia Depois de Amanhã” para ajudar na adaptação à vida russa. Segundo Lvova-Belova, 350 crianças foram adotadas por famílias russas e mais de 1 mil aguardam adoção. Em agosto do ano passado, postou fotos de crianças ucranianas da região de Donetsk ao redor de fogueiras na floresta e disse que viviam “temporada extraordinária de acampamento”.

“O acampamento conta com nove oficinas temáticas para capacitar os adolescentes a traçar seus projetos de vida e orientações profissionais. Estamos ansiosos para a abertura!”, escreveu.

Segundo o relatório publicado nesta semana, o principal propósito desses acampamentos, que se espalham de uma ponta a outra da Rússia e contam com 43 unidades, parece ser reeducação política: pelo menos 32 (78%) dos acampamentos identificados pela pesquisa parecem engajados em esforços sistemáticos de reeducação que expõem crianças da Ucrânia a cursos centrados na Rússia, como educação cultural, patriótica ou militar, além do próprio idioma. 

O primeiro nome das crianças é frequentemente alterado, e elas recebem um novo passaporte russo.

Segundo a pesquisa, crianças de dois dos campos foram entregues a famílias adotivas na Rússia — 20 foram adotadas por famílias de Moscou e matriculadas em escolas locais.

O retorno de crianças de pelo menos quatro campos à Ucrânia foi suspenso. Em dois deles, Artek e Medvezhonok, segundo os pais, o retorno das crianças foi adiado indefinidamente. Segundo a pesquisa, as autoridades russas inicialmente disseram aos pais das crianças que retornariam no final do verão, mas depois cancelaram a data de retorno. Centenas de crianças da Ucrânia de pelo menos dois outros campos, Luchistyi e Orlyonok, foram ou estão sendo detidas após a data prevista.

A pesquisa de Yale não identificou quantas dessas crianças foram reunidas com suas famílias. Alguns pais também descreveram não conseguir obter informações sobre o estado ou o paradeiro de seus filhos depois que seu retorno foi suspenso. Não se sabem quantas crianças ucranianas a Rússia detém atualmente e quantas foram liberadas para suas famílias.

A transferência em massa de crianças, independentemente de serem órfãs, pode constituir um crime de guerra e um crime contra humanidade em alguns casos, segundo os investigadores de Yale.

E, embora muitas das crianças tenham vindo de orfanatos e lares coletivos, as autoridades russas também levaram crianças cujos parentes ou tutores as querem de volta, de acordo com autoridades internacionais de direitos humanos.

Na quarta-feira, a Embaixada da Rússia em Washington repudiou como “absurdas” as alegações de que crianças ucranianas foram transferidas à força.

“A Rússia aceitou crianças que foram forçadas a fugir com suas famílias dos bombardeios e atrocidades das Forças Armadas da Ucrânia. Fazemos o possível para manter os menores com suas famílias e, em caso de ausência ou falecimento dos pais e parentes, transferimos os órfãos sob tutela. Garantimos a proteção de suas vidas e bem-estar.”

Enquanto isso, no Telegram de Lvova-Belova, os vídeos se sucedem. Crianças de Donetsk e Donbass desembarcam na Rússia e são recebidas por suas "novas famílias", com muitas lágrimas de alegria e balões.

Recentemente, ela comentou o caso de Filip, que inicialmente mostrou "alguma negatividade" relacionada à adaptação. Ele insistia em cantar o hino ucraniano e falava de sua participação em manifestações de apoio ao Exército.

Mas seu comportamento mudou. Ele agora está "grato à grande família russa" que o salvou, disse Lvova-Belova. (Com agências)


Fonte: O GLOBO