Governo tenta inserir a ideia de que a paz é necessária e pode vir através do diálogo, mas esbarra nas diferenças entre os atores internacionais e na dificuldade de construir pontes

Em maio de 2022, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva disse à revista americana Time que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, era tão responsável como o russo Vladimir Putin pela guerra, que acaba de completar um ano. 

Já no poder, Lula moderou o discurso, passou a condenar enfaticamente a invasão russa, falar na necessidade imediata de um cessar-fogo e promover a ideia de uma negociação de paz. 

O problema é que o discurso do presidente brasileiro contrasta com o que se ouve em ambas as frentes do conflito: novas ofensivas, envio de armas, tanques e munições, em definitiva, mais guerra.

Num mundo onde ainda predomina o discurso bélico e se fala em expetativa de vitória militar — cenário altamente improvável para ambos os lados neste momento —, o presidente brasileiro tenta incluir na agenda a necessidade de buscar caminhos que levem à paz. 

Ele não é o único, mas os obstáculos ainda são enormes e nada indica que uma negociação possa acontecer no curto, e talvez nem mesmo no médio prazo.

O retrato do momento é um Brasil que fala em paz, busca articular-se com países não envolvidos diretamente na guerra, mas parece longe de convencer os envolvidos. Pequenos passos são dados, há expetativa positiva e as estratégias estão sendo traçadas, mas não existe ainda um plano para apresentar ao mundo. 

Lula é ouvido por líderes de grandes potências, com o americano Joe Biden e o chanceler alemão, Olaf Scholz, fala-se sobre paz, mas, em campo e em seus discursos, estes governos continuam apostando na guerra.

— A guerra ainda está num momento em que faz sentido para os dois lados. A chamada Teoria da Maturidade de Conflito diz que só há negociações de paz quando o conflito está desgastado o suficiente para que as duas partes se sintam obrigadas a negociar — explica Mariana Kalil, professora de Geopolítica da Escola Superior de Guerra.

Ela acredita que “hoje existem poucas chances [de um processo de paz]. Mas, se der certo, a cartada é fantástica, e os custos para o Brasil são baixos”.

Contato com Zelensky

Uma das grandes perguntas ainda sem resposta, frisa a especialista, é se o Brasil de Lula tem cacife para mediar entre Rússia e Ucrânia:

— Nos últimos seis anos, desde o governo Michel Temer, o mundo enxergou outra faceta da identidade nacional brasileira, a cooperação Sul-Sul foi abandonada, enfim, existe maior desconfiança.

Na última sexta-feira, um dia após a votação de uma resolução proposta por europeus e americanos na Assembleia Geral das Nações Unidas que obteve expressivo apoio, inclusive do Brasil, o vice-ministro das Relações Exteriores russo, Mikhail Galuzin, disse, em entrevista à agência Tass, que “estamos examinando as iniciativas, principalmente do ponto de vista da política equilibrada do Brasil e, claro, levando em consideração a situação 'no terreno”.

No mesmo dia, Zelensky convidou Lula para visitar Kiev, e disse precisar da ajuda do presidente brasileiro para que a “Ucrânia seja mais bem compreendida na América Latina”. A possibilidade de um telefonema entre ambos chefes de Estado está sendo conversada há algum tempo, mas ainda não tem data marcada. “Haverá comunicação com Zelensky, mas não temos pressa”, frisam fontes brasileiras.

As declarações de autoridades russas e ucranianas são recebidas com cautela por analistas como Kalil.

— Ambos estão buscando legitimar-se perante os países da América Latina. Lula é visto como uma figura que pode ajudar, nesse sentido, numa guerra que é híbrida — assegura a professora.

Na visão de Giorgio Romano, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC e integrante do Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (Opeb), “as peças estão se mexendo, e é o momento do Brasil se posicionar. Lula já está armando a agenda das presidências brasileiras do G20, em 2024, e dos Brics (grupo também integrado por China, Índia, Rússia e África do Sul), em 2025”.

— Estão se abrindo espaços, e o Brasil quer ajudar, não necessariamente liderar — aponta Romano.

Para fontes do governo brasileiro, “é natural que o vice-chanceler russo tenha se expressado sobre as propostas de Lula, um presidente que se recusa a vender armas para a Ucrânia e está querendo criar condições para uma negociação... a diplomacia atua, enquanto a guerra continua”.

Articulação na ONU


Na última quinta-feira, a Assembleia Geral da ONU aprovou por 171 votos a favor, entre eles o do Brasil, 7 contra e 32 abstenções (China e Índia, entre outros), uma resolução que, entre outros pontos relevantes, lamenta as “terríveis consequências humanitárias e de direitos humanos da agressão da Federação Russa contra a Ucrânia”, mas, por forte iniciativa do Brasil, também fala na “necessidade de alcançar uma paz abrangente, justa e duradoura”. 

Diplomatas brasileiros admitem a enorme dificuldade de construir pontes entre as partes. O caminho, para o governo Lula, não é o isolamento de Moscou. E, nesse ponto, as divergências com americanos e europeus são enormes.

O presidente brasileiro está ciente do tamanho do desafio e sua estratégia é buscar apoios de governos que, como ele, querem pensar em propostas para a paz e não em mais guerra. A China, que na última votação na ONU falou reiteradas vezes em paz, será a próxima viagem internacional de Lula, no final de março, e é uma das grandes apostas do presidente.

Outros possíveis parceiros do Brasil são Índia, Turquia, África do Sul, e, claro, governos latino-americanos. Mas, para prosperar, a inciativa precisa de pesos pesados. “A China será um termômetro, mas não será definitivo”, disse uma fonte brasileira. Outro evento aguardado pelo governo Lula para falar sobre paz é a próxima reunião do G7, em maio, para a qual o Brasil deve ser convidado. Também está prevista uma visita do chanceler russo Sergei Lavrov a Brasília, em maio.

— Esta proposta do Brasil não será tomada como referência de forma imediata, mas tampouco está sendo rechaçada. Precisamos saber que outros países vão aderir e qual será o conteúdo da proposta — comenta Juan Tokatlián, vice reitor da Universidade Torcuato Di Tella, de Buenos Aires.

Já Mariano Aguirre, que integra a Rede Latino-americana de Segurança da Fundação Friedrich-Ebert, acredita que a proposta de paz lançada por Lula “é importante para abrir um novo espaço diplomático, num momento no qual o discurso dominante é o de vencer militarmente a Rússia”.

— Nada vai mudar de um dia para o outro, mas é importante que o Brasil, um país de relevância, possa criar este espaço no qual se fale sobre negociação e não apenas sobre guerra — enfatiza Aguirre.

Para avançar, o Brasil precisa convencer potenciais aliados como a China, e, entre os que hoje continuam firmes e fortes ao lado de Zelensky, principalmente os EUA.

A paz entrou no radar, dizem fontes do governo brasileiro, mas o governo americano, ampliam, e seus aliados da UE, continuam vendo uma vitória na guerra como a única saída para acabar com o conflito. Em palavras de outra fonte do governo brasileiro, “ainda vai piorar muito, antes de melhorar. Não vemos um cessar-fogo nos próximos meses”.

O melhor dos cenários no curto prazo, admitem as fontes do governo Lula, é o que especialistas chamam de “frozen conflict”, basicamente que o conflito entre numa fase de adormecimento, com alguma escaramuça ali ou acolá, mas com menos matança de civis, prejuízo econômico e impacto no resto do mundo.


Fonte: O GLOBO