Presença feminina na diplomacia avança, mas enfrenta desigualdade histórica. Inédita mobilização de mulheres diplomatas pretende mudar cenário

Prioridade nos dicursos do novo governo, a igualdade de gênero no Itamaraty ainda é um desafio para o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. 

Apesar de ser um tema recorrente do chanceler Mauro Vieira — que escolheu a embaixadora Maria Laura da Rocha como primeira mulher a ocupar a Secretaria-Geral do Itamaraty — e de alguns avanços desde janeiro, a busca por paridade entre mulheres e homens nos principais postos do Ministério das Relações Exteriores segue distante.

De um total de 1.539 diplomatas ativos, apenas 354 são mulheres, ou seja, 23%. Já entre os 210 embaixadores, o número de mulheres na posição é de 43, representando 20% do nível mais alto da carreira. 

Por outro lado, no concurso do Instituto Rio Branco de 2022, 38% dos aprovados foram mulheres, um recorde para a instituição. E, deste universo feminino dos aprovados no ano passado, outro marco importante para a diversidade da instituição: 40% são mulheres negras.

O avanço da presença feminina no comando de embaixadas estratégicas, como a de Washington, que terá a embaixadora Maria Luiza Viotti à frente desta representação pela primeira vez, mostra uma mudança de postura do governo Lula em relação a outras gestões. 

A diplomacia feminina também assumirá a FAO (a organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), para a qual foi nomeada a embaixadora Carla Barroso, e da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), onde estará a embaixadora Paula Alves de Souza.

Entre as dez secretarias que formam o gabinete do ministro Mauro Vieira, três serão comandadas por mulheres: foram escolhidas as embaixadoras Gisela Padovan para América Latina e Caribe; Maria Luiza Escorel para Europa e América do Norte; e Fátima Ishitani para Gestão e Administração. 

Ou seja, 30% destes cargos. No fim do governo Jair Bolsonaro apenas uma secretaria era comandada por mulher entre as sete existentes, ou seja, uma participação feminina de 14%.

Também foram recentemente nomeadas para chefiar embaixadas Claudia Buzzi (Suíça), Márcia Donner (Coreia do Sul) — única diplomata mulher que integrou o Gabinete do ex-chanceler Carlos França — e Eugênia Barthelmess (Cingapura).

A carreira diplomática vem se adaptando às demandas de diversidade, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. 

Um desses passos foi a incorporação da Lei de Cotas (Lei 12.990/2014), em 2015, no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), pela qual, até o ano passado, 39 vagas para negros foram preenchidas (14 mulheres e 25 homens). Além disso, cinco negros tiveram nota suficiente para serem admitidos pela ampla concorrência, fora das cotas (quatro homens e uma mulher).

Associação feminina

Segundo disse ao GLOBO a nova secretária-geral, “muitas mulheres serão designadas diretoras de departamentos”. A vontade política de dar novos e mais amplos passos em direção à paridade de gênero é expressada sem rodeios.

Em paralelo, as mais de 200 integrantes da Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras (AMDB), criada no mês passado, propõem em estatuto “trabalhar para que a paridade de gênero seja adotada e refletida na estrutura interna do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, na promoção de cargos e atribuição de funções, em todos os níveis hierárquicos da carreira e de forma equilibrada de acordo com a classificação dos postos e sua distribuição geográfica”.

A nova associação é presidida pela embaixadora Irene Vida Gala, que chefia o escritório do Itamaraty em São Paulo, que afirmou que “a maioria das mulheres diplomatas ainda está no chão de fábrica”.

— Para as jovens diplomatas é importante saber que há um compromisso com a paridade em todos os escalões da carreira e nas promoções — disse Vida Gala.

A presidente da AMDB pede mulheres no que ela chama de “grand slam” da diplomacia brasileira, como embaixadas e postos mais destacados.

— Dos dez postos mais importantes que o Brasil tem no exterior, apenas um terá uma embaixadora. E não se trata de questão de mérito, porque temos embaixadoras mais que qualificadas para esses postos — argumenta Vida Gala. 

— Não aspiramos a paridade neste momento, porque sabemos que do ponto de vista do número não temos condições de ocupar 50% das vagas, mas esperamos uma sinalização clara da chefia de que está buscando caminhar para essa paridade, para formar uma chanceler.

A associação já tem agenda própria. Recentemente, suas integrantes se reuniram em Brasília com a diretora para as Américas e o Caribe da Chancelaria da França, Michèle Ramis, que também esteve com a cúpula do Itamaraty.

As mulheres que ocupam os mais altos cargos do Itamaraty dizem sentir-se parte de um momento histórico. Na opinião da embaixadora Gisela Padovan, que já havia chefiado o consulado brasileiro em Madri e já foi diretora do Instituto Rio Branco, “hoje existe um olhar cuidadoso sobre o tema de gênero”.

— Temos muitas primeiras vezes. Serei a primeira mulher que assumirá a secretaria que cuida de América Latina, um tema prioritário para o governo Lula. Poderíamos avançar mais? Sim, mas vejo o início de um processo promissor — disse.

As mulheres, disse Padovan, “devem ser incentivadas para entrar na carreira diplomática. Ver uma mulher na embaixada de Washington é um incentivo”.

— Temos mulheres prontas para assumir qualquer posto — afirmou a embaixadora.

Sua colega que foi escolhida para comandar a missão na FAO também está otimista.

— As mulheres estão ampliando espaços em momentos em que o Brasil volta a exercer uma liderança, e no qual existe muita expectativa. Temos uma responsabilidade enorme — disse a embaixadora Carla Barroso.

Para ela, a defesa da igualdade de gênero é “uma pauta que conversa com a realidade”.

— Ainda temos de avançar muito, mas temos empenho. Sou otimista e acho que estamos num bom caminho — aponta a nova embaixadora na FAO, que está trabalhando na edição de um livro sobre dez mulheres que, de diferentes maneiras, contribuíram com a diplomacia brasileira desde o início do século passado.

— Queremos ser parte da construção de soluções — afirmou a embaixadora Barroso, que cuidará, nada mais e nada menos, do que de alimentação num organismo central da governança global, crucial num mundo mergulhado numa guerra que parece longe de terminar e cujas consequências impactam todos os continentes.

Luta histórica por espaço

A primeira mulher admitida na carreira diplomática brasileira foi a baiana Maria José de Castro Rebello Mendes, empossada em 27 de setembro de 1918 pela então Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Segundo informações da época, a inscrição de Maria José foi contestada publicamente e virou motivo de polêmica. 

O exemplo de Maria José inspirou um documentário realizado pela Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), com apoio do Grupo de Mulheres Diplomatas — que acaba de transformar-se em uma associação formal. 

A intervenção no caso do jurista Ruy Barbosa junto ao então ministro das Relações Exteriores, Nilo Peçanha, foi crucial para que a diplomata conseguisse, finalmente, ser aceita, abrindo um caminho de lutas.

Como conta o embaixador Rubens Barbosa em artigo publicado no site Interesse Nacional, a luta foi com idas e vindas. A reforma de 1931 permitiu mulheres no Corpo Consular, mas não no Corpo Diplomático, e foi revertida em 1938, com a proibição total da entrada de mulheres no Itamaraty. “Nem a criação do Instituto Rio Branco, em 1945, conseguiu modificar essas restrições”, explica.

O embaixador lembra que somente na reforma do Itamaraty de 1953 a proibição de ingresso de mulheres foi eliminada, “embora ainda com limitações”. Ele relata que só em 1988 a primeira mulher negra conseguiu entrar no Itamaraty.


Fonte: O GLOBO