Projeto, que críticos dizem ameaçar o Estado de direito, ainda passará por voto final; entre as medidas há autorização para Legislativo derrubar decisões da Suprema Corte

Apesar de enormes protestos, o Parlamento de Israel avançou nesta quarta-feira o projeto de uma contestada reforma judicial vista por críticos como uma ameaça ao Estado de direito. A medida promovida pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, à frente de uma coalizão de extrema direita, abriria brechas para a politização do Judiciário, minando a divisão dos Poderes.

O projeto obteve a primeira aprovação na terça, recebendo o endosso de 63 parlamentares após sua primeira leitura. Votaram para rejeitá-la 47 deputados , e outros 10 não compareceram à sessão em Jerusalém. Haverá mais uma votação preliminar antes da decisão final.

Os arredores da Knesset, Legislativo do país, foram ocupados por dezenas de milhares de manifestantes que chegaram em comboios — mais cedo, haviam tentado também bloquear rodovias, continuando os protestos frequentes das últimas semanas. Dentro do prédio, o debate que começou na segunda adentrou a madrugada, com gritos de “vergonha” e discussões acaloradas.

Enquanto aliados do premier celebravam o primeiro triunfo, seus críticos demonstraram preocupações com retrocessos democráticos e prometeram “lutar pela alma da nação”. O presidente Isaac Herzog, cujo papel é majoritariamente cerimonial, fez um pedido de diálogo e consenso, sem muito sucesso.

— Integrantes da coalizão, a História irá julgá-los por isso nesta noite — disse o ex-premier Yair Lapid, centrista e líder da oposição, que impõe uma pausa de 60 dias no processo legislativo como condição para negociar. — Pelos danos à democracia, pelos danos à economia, pelos danos à segurança, pelo fato de vocês estarem fraturando o povo de Israel e simplesmente não se importarem.

Lapid era um dos líderes do governo que antecedeu o atual, que reunia oito partidos de todo o espectro político. O grupo havia se juntado justamente para destronar Netanyahu, na época há 12 anos no poder. As divergência internas, contudo, falaram mais alto, e a aliança ruiu após 18 meses.

Supremo na mira

Nesta quarta, a Knesset aprovou preliminarmente uma medida paralela para impedir a Suprema Corte de intervir em nomeações ministeriais. Se terminar implementada, permitirá que o aliado de Netanyahu, Arye Dery, assuma o Ministério da Saúde após sua indicação ser derrubada por 10 votos a um devido a suas condenações prévias por fraude e outras ofensas fiscais.

Na véspera, haviam aprovado os pontos-chave da reforma judicial: uma mudança na composição da comissão responsável por selecionar juízes, que hoje tem nove membros, e igual representação de magistrados, políticos e advogados. A proposta em debate, na prática, alteraria o equilíbrio de poder, dando ao governo do momento controle sobre as nomeações.

Decidiram também dar aprovação preliminar para que o Parlamento possa derrubar decisões colegiadas ou não da Suprema Corte com uma maioria simples de 61 votos (a Casa tem 120 assentos). O cenário é complicado pelo fato de o país não ter uma Constituição e de seu sistema parlamentar ter pouca separação entre o Executivo e o Legislativo.

Quase sempre, os governistas têm a maioria na Knesset, e a Suprema Corte exerce um papel importante de freios e contrapesos. Quando o Estado israelense foi fundado, em 1948, a intenção era que uma Carta Magna fosse redigida, o que nunca aconteceu.

Assim, o país tem dois tipos de leis, as normais e as básicas, que muitos entendem como uma Constituição. Hoje, a Suprema Corte pode derrubar legislações que caminhem no sentido contrário às leis básicas do país, funcionando como um importante sistema de freios e contrapesos.

Os critérios para determinar o que constitui ou não uma lei básica, segundo juristas, já são turvos, mas o governo deseja agora também vetar o poder de revisão da Suprema Corte. O medo de aparelhamento é alimentado também pelo desejo de reverter o direito que as cortes têm de revisar medidas administrativas do governo sob a justificativa de “motivos razoáveis”.

Críticas internacionais

A questão tem como plano de fundo o próprio premier: em 2020, Netanyahu virou réu por três casos de corrupção, tornando-se o primeiro chefe de Estado na ativa julgado na História de Israel. O processo ainda está em curso, mas, quando inicialmente chegou ao poder, defendia fortalecer a independência do Judiciário. Hoje, afirma que os juízes têm demasiada influência sobre o Legislativo e o Executivo.

Na terça, o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Türk, pediu a suspensão da reforma. Segundo ele, "diante do nível de preocupação pública e política", é necessário suspender as propostas e promover "um debate e uma reflexão mais amplos". O chamado foi taxado de "absurdo" por Netanyahu.

No domingo, pedido similar havia sido feito por Tom Nides, embaixador americano em Israel. Em uma entrevista à CNN, o representante do maior aliado israelense pediu para Netanyahu "pisar no freio" e tentar "chegar a um consenso, unir os lados":

— Quando acreditamos que as instituições democráticas estão sob estresse e tensão, nós demonstramos [nossas preocupações]. É isso que estamos fazendo agora — afirmou.


Fonte: O GLOBO