A Copa era só o começo da brincadeira para o Catar. E não há arranha-céu ou loja que se compare ao futebol

Londres tem um famoso arranha-céu chamado The Shard. Em forma de pirâmide, com quase 310 metros, é um dos prédios mais altos da Europa. Também fica na cidade a loja de departamento Harrods, outro símbolo britânico, com quase 200 anos de existência. 

É provável que você não saiba, porque esse não é o tipo de coisa que se lê na editoria de Esportes de um jornal brasileiro, mas ambos foram vendidos ao Catar na década passada e simbolizam o avanço do Oriente Médio sobre a Inglaterra. Ainda assim, nenhum deles se compara ao que pode ocorrer em 2023.

A diferença entre fazer negócios dentro e fora do futebol é que, no futebol, o mundo inteiro fala de você. Especialmente se o plano for comprar o Manchester United. Assim tem sido desde que, na semana passada, o Catar anunciou ser um dos interessados na compra de 100% do clube inglês. 

A imprensa britânica especula que o valor da aquisição esteja próximo de 4,5 bilhões de libras — ou R$ 28 bilhões. Em nota oficial, o xeque Jassim Bin Hamad Al Thani fala em recolocar o time em tempos gloriosos por meio de investimentos em jogadores, centro de treinamento, estádio e comunidade.

Ainda é cedo para dizer que o Catar será dono do United, pois a venda tem trâmites burocráticos a cumprir; a família Glazer, atual proprietária, precisa tomar várias decisões; e há outros interessados na aquisição. 

O bilionário britânico Jim Ratcliffe já declarou publicamente que participa da concorrência e vem sendo tratado como favorito. O fundo de investimentos americano Elliott — que até outro dia era dono do Milan —, apresentou proposta de último minuto. Nada está definido. Mas a mera intenção manifestada pelo Catar já é uma história e puxa reflexões variadas.

Comprar um clube não é como sediar uma Copa do Mundo. No evento, o Catar conseguiu projetar a sua imagem perante todo o mundo, é verdade, porém sob constrangimentos. Milhares de trabalhadores morreram nas construções de estádios e em obras urbanas. Afrontas aos direitos humanos, como a perseguição a homossexuais, foram lembradas constantemente. 

Num clube, todas essas acusações continuam a ser feitas, mas, convenhamos, é muito mais fácil manipular a opinião de milhões de fãs pelo planeta se o time faz gols e ganha campeonatos. O coração fala mais alto.

Comprar o Manchester United também é diferente de deter o Paris Saint-Germain. O clube francês foi fundado em 1970, quando o inglês já estava próximo de festejar seu centenário. O PSG é de certa forma rejeitado internacionalmente, porque, nele, quase tudo é artificial. 

Muitos torcedores gostam de vê-lo fracassar na Liga dos Campeões, como se fosse a vitória do futebol “de verdade” sobre um projeto fabricado, movido unicamente por dinheiro e pela ambição catari. No United, o ponto de partida é outro. Mesmo que esteja em baixa há vários anos, há torcida numerosa, troféus e tradição.

Como a Premier League reagiria à entrada de mais um clube-estado? Os Emirados Árabes são donos do Manchester City, e a Arábia Saudita comprou o Newcastle não faz muito tempo. 

Como a Uefa regularia as disputas esportivas entre United e PSG, se ambos fossem propriedade do mesmo dono? Quais seriam as consequências para a economia do futebol, se mais um projeto inorgânico, abastecido com dinheiro do Oriente Médio, for adiante? Por ora, só o que sabemos: a Copa era só o começo da brincadeira para o Catar. E não há arranha-céu ou loja que se compare ao futebol.


Fonte: O GLOBO