Com a volta de Lula ao poder, expectativa de Rússia e China é de expandir as áreas de cooperação entre os países do grupo, apesar de críticas dos EUA

Ignorando as críticas dos Estados Unidos, a África do Sul levou adiante exercícios navais com a Rússia e a China, concluídos ontem. A participação sul-africana gerou particular incômodo em Washington pelo momento das manobras, justamente na semana em que a invasão da Ucrânia completou um ano. Seria um novo sinal da inclinação do país africano para a órbita sino-russa.

É a segunda vez que os três países realizam exercícios desse tipo, mas a primeira em que militares brasileiros são convidados a fazer parte, ainda que como observadores. A iniciativa de incluir o Brasil foi revelada pelo governo chinês há poucos dias, em meio às manobras na costa sul-africana que incluíram testes de mísseis russos hipersônicos.

O aceno ao Brasil reafirma a disposição de Pequim e Moscou de expandir as áreas de cooperação entre os países do Brics e fortalecer o grupo como contraponto às alianças ocidentais. Com a volta de Lula à Presidência, a expectativa do governo chinês é que o Brasil compre ao menos parte dessa ideia — que não tinha como prosperar em Brasília nos últimos anos devido às diferenças ideológicas com o bolsonarismo. (A coluna consultou o Ministério da Defesa, mas não obteve retorno sobre a resposta do Brasil ao convite para as manobras.)

A guerra na Ucrânia cria novos dilemas e interesses dentro do Brics. Para o Brasil, único membro do grupo que apoiou a recente resolução da ONU que exigiu a retirada das tropas russas da Ucrânia, um Brics com peso geopolítico reforçado oferece oportunidades e riscos. Por um lado, pode servir como um canal de diálogo privilegiado com China e Rússia para negociar uma saída para o conflito na Ucrânia. 

É esse o entendimento do chanceler Mauro Vieira, que considera o Brics um “ambiente confortável” para negociar o fim da guerra, conforme ele disse ao jornal “Estado de S. Paulo”. A visita de Lula à China, prevista para o fim de março, será a primeira chance de medir o espaço de manobra.

Mas há também zonas de desconforto, como mostra o convite para os exercícios militares ao lado da Rússia. E este é provavelmente apenas o começo. Com o apoio ainda discreto da China, a Rússia intensificou a defesa de um sistema de pagamentos próprio do Brics como alternativa à dominância do dólar, para amenizar o impacto das sanções. 

Rejeitada pelo governo Bolsonaro, a ideia pode ganhar no Brasil um aliado com a volta de Lula, sugere a imprensa estatal russa. Outra novidade que anima Moscou é a nomeação de Dilma Rousseff para chefiar o Banco do Brics — instituição criada quando ela estava na Presidência. Visto em Washington como uma ameaça, o avanço de um sistema alternativo ao dólar abriria potenciais frentes de tensão com os EUA.

Apesar da desconfiança crescente entre diplomatas ocidentais, o governo de Pretória afirma ser neutro na questão da Ucrânia, e que exercícios militares são comuns entre “países amigos”. Assim como a África do Sul, nenhum membro do Brics aderiu às sanções contra a Rússia e todos manifestaram neutralidade em relação ao conflito, mas cada um à sua maneira. Com sua ambição de ter um papel na solução da crise, o Brasil terá que mostrar que tem credibilidade nos dois lados para abrir caminhos à paz que hoje estão fora do alcance.


Fonte: O GLOBO