Empresa admite 'conspiração para fraudar' certificações de aeronaves. Ela terá 'liberdade condicional' e será supervisionada por um tribunal do Texas

A Boeing concordou, neste domingo, em se declarar culpada de acusação criminal por dois acidentes fatais envolvendo 737 Max, em 2018 e 2019, nos quais morreram 346 pessoas. Segundo o jornal americano The New York Times, a empresa será colocada em "liberdade condicional" e será supervisionada por um tribunal do Distrito Norte do Texas, por três anos.

A empresa vai se declarar culpada de “conspiração para fraudar o governo federal dos Estados Unidos” durante a certificação dos aviões Max. E vai pagar uma multa de US$ 487,2 milhões — o máximo permitido por lei.

Também vai investir pelo menos US$ 455 milhões nos próximos três anos para fortalecer seus programas de conformidade e segurança.

"Chegamos a um acordo de princípio sobre os termos de uma resolução com o Departamento de Justiça", confirmou a Boeing em comunicado enviado à AFP, nesta segunda.

Audiência para formalizar a culpa

O acerto ocorre depois que os promotores determinaram que a gigante da aviação americana violou um acordo anterior também firmado com o Departamento de Justiça dos EUA, em 2021, e que tratava dos dois acidentes aéreos. Os acidentes ocorreram na Etiópia e na Indonésia.

Como parte da liberdade condicional, o Departamento de Justiça nomeará um monitor independente para garantir que as medidas de segurança da empresa sejam seguidas, com envio de relatórios anuais ao governo.

A companhia enfrentará penalidades adicionais se qualquer um dos termos for violado. O Conselho de Administração da Boeing também será obrigado a se reunir com as famílias das vítimas do acidente. A indenização às famílias será determinada pelo tribunal.

A decisão da Boeing de se declarar culpada é significativa porque a empresa não é condenada por um crime federal há décadas. No documento, o departamento descreveu a acusação de conspirar para fraudar o governo federal como "a ofensa mais séria prontamente comprovável".

O Departamento de Justiça e a Boeing fizeram uma apresentação conjunta no domingo à noite, notificando o Tribunal Distrital de que haviam chegado a um consenso. Nos próximos dias, o acordo formal será apresentado. O tribunal, então, marcará uma audiência para que a empresa formalmente declare sua culpa pelos acidentes. As famílias das vítimas poderão falar durante essa audiência.

Famílias das vítimas contestam decisão

As famílias das vítimas, que foram informadas há uma semana sobre os contornos gerais do acordo, disseram que ele não foi longe o suficiente. Segundo um advogado do escritório Clifford Law, que os representa, familiares das vítimas declararam-se ''muito decepcionados''.

Eles pediram ao tribunal que rejeitasse o acordo na próxima audiência, argumentando que "faz concessões injustas à Boeing que outros réus nunca receberiam".

“Muito mais evidências foram apresentadas nos últimos cinco anos para mostrar que a cultura da Boeing de colocar o lucro acima da segurança não mudou. Este acordo de confissão apenas promove esse objetivo corporativo”, disse o advogado Robert A. Clifford em comunicado.

Paul G. Cassell, advogado de mais de uma dúzia de famílias, disse que elas esperavam consequências mais rígidas para a empresa e seus executivos, incluindo um julgamento. E afirmou que o acordo do governo com a empresa “claramente não está no interesse público.”

— Este acordo indulgente falha em reconhecer que, devido à conspiração da Boeing, 346 pessoas morreram. Através de uma advocacia astuta entre a Boeing e o Departamento de Justiça dos EUA, as consequências mortais do crime da Boeing estão sendo ocultadas — ressaltou Cassell.

A decisão da Boeing de se declarar culpada não proporciona imunidade a quaisquer funcionários ou executivos. E o acordo não a protege de acusações que possam surgir de outras investigações, incluindo uma sobre o episódio de 5 de janeiro envolvendo um jato 737 Max da Alaska Airlines, que foi forçado a fazer um pouso de emergência depois que um painel da fuselagem estourou em pleno voo, logo após o avião decolar do aeroporto de Portland, no estado do Oregon.

Embora o incidente não tenha causado ferimentos graves, o incidente poderia ter sido catastrófico se tivesse ocorrido minutos depois, quando o avião tivesse atingido altitude de cruzeiro e comissários de bordo e passageiros estivessem se movendo pela cabine.

Um porta-voz da Boeing confirmou que a empresa chegou a um acordo com o Departamento de Justiça para este caso, mas se recusou a fazer comentários adicionais.

Acordo atualiza pacto alcançado em 2021

Este acordo atualiza o Acordo de Acusação Diferida (DPA) original alcançado em janeiro de 2021, nos últimos dias da administração de Donald Trump, sob acusações de que a Boeing fraudou conscientemente a Administração Federal de Aviação durante a certificação do MAX. O período probatório de três anos estava previsto para expirar este ano. Mas em janeiro, a Boeing entrou novamente em crise com incidente envolvendo o jato 737 MAX da Alaska Airlines.

O pacto de 2021 determinava que a Boeing pagasse US$ 2,5 bilhões em multas e restituições em troca de imunidade criminal. A empresa já pagou US$ 500 milhões em restituição às famílias das vítimas. Além disso, o acordo de 2021 exigia que a empresa não se envolvesse em irregularidades durante um período de três anos.

Em maio, o Departamento de Justiça disse que a Boeing quebrou o acordo porque a empresa falhou em “desenhar, implementar e fazer cumprir” um programa de ética e conformidade em sua operação para prevenir e detectar violações das leis de fraude dos EUA.

Como parte do acordo de 2021, o Departamento de Justiça disse que a Boeing teria que pagar apenas mais US$ 243,6 milhões de multa se a empresa estivesse em violação. Mas um juiz decidirá, em última análise, se o pagamento de 2021 conta para a multa total, disse um funcionário do Departamento de Justiça, falando sob condição de anonimato para discutir o acordo. O juiz também decidirá quanto mais de restituição deve ser paga durante a sentença.

A acusação de 2021 focou em dois funcionários da Boeing que foram acusados de reter informações da Administração Federal de Aviação sobre mudanças que a Boeing havia feito no software de controle de voo que foi apontado como causa de ambos os acidentes.

De acordo com aquele acordo, além das multas e restituições às famílias das vítimas, a Boeing pagou mais de US$ 1,7 bilhões a seus clientes porque não puderam receber as entregas dos jatos 737 Max.

No total, a Boeing gastou cerca de US$ 20 bilhões devido aos acidentes, incluindo multas, pagamentos às famílias, reembolsos às companhias aéreas e outros custos decorrentes de uma paralisação de quase dois anos do 737 Max pela FAA.

O Departamento de Justiça enfrentou pressões concorrentes sobre como punir a Boeing, que já está enfrentando dificuldades, sendo um dos maiores exportadores dos EUA e um grande empregador entre os principais contratantes de defesa do governo. Em 2023, quase 40% da receita da empresa veio de contratos com o governo dos EUA.

Embora os detalhes completos do acordo não tenham sido incluídos na apresentação pública ao tribunal no domingo, é provável que a Boeing obtenha garantias do governo de que uma condenação por crime grave não prejudicará seus contratos governamentais, reduzindo o impacto da acusação nas operações da empresa, disse Mark Lindquist, advogado das famílias das vítimas dos acidentes do Max 8 que agora representa passageiros no voo da Alaska Airlines.

Essas isenções seriam independentes do acordo de confissão, disse ele:

— Embora muitos de nós preferíssemos uma acusação mais vigorosa, uma confissão de culpa por um crime grave é um passo sério em termos de responsabilização — disse Lindquist.


Fonte: O GLOBO