Na enfermaria de uma prisão, Yuval Bitton detectou um tumor no cérebro do palestino Yahya Sinwar. Quase duas décadas depois, o paciente arquitetou a ação do Hamas que tirou a vida de cerca de 1.200 pessoas em outubro do ano passado, entre elas a do parente do profissional de saúde judeu

Na enfermaria de uma prisão, Yuval Bitton detectou um tumor no cérebro do palestino Yahya Sinwar. Quase duas décadas depois, o paciente arquitetou a ação do Hamas que tirou a vida de cerca de 1.200 pessoas em outubro do ano passado, entre elas a do parente do profissional de saúde judeu

No dia 7 de outubro do ano passado, o Dr. Yuval Bitton se lembra de ser acordado pelo toque insistente do telefone. Era sua filha, aflita, do exterior, perguntando: “Pai, o que aconteceu em Israel? Liga a TV agora!”

Os âncoras ainda montavam seus relatos, mas o que se sabia era isso: homens armados palestinos tinham passado pelas defesas de Israel, infiltrando-se em mais de 20 cidades e bases militares, matando aproximadamente 1.200 pessoas e levando mais de 240 homens, mulheres e crianças como reféns para a Faixa de Gaza.

Mesmo naquele primeiro momento, Bitton conta ter tido certeza sobre quem havia arquitetado o ataque: Yahya Sinwar, o principal líder do Hamas em Gaza e preso número 7333335 no sistema prisional israelense de 1989 até sua libertação, em uma troca de prisioneiros, em 2011.

Bitton tinha um histórico singular com Sinwar.

Ao assistir às imagens de terror e morte em sua tela, ele foi atormentado por uma decisão que havia tomado quase duas décadas antes — quando, trabalhando em uma enfermaria prisional, ele ajudara um Sinwar desesperadamente doente. E como, depois disso, o futuro líder do Hamas lhe disse que “devia sua vida a ele”.

Os dois homens formaram uma espécie de relacionamento: inimigos jurados que, no entanto, mostravam um respeito mútuo. Como dentista e, mais tarde, oficial sênior de inteligência do serviço prisional israelense, Bitton passou centenas de horas conversando (e depois analisando) com Sinwar.

Nos sete meses desde 7 de outubro, Sinwar segue procurado pelas forças israelenses. O ataque do país a Gazana pró matou mais de 35 mil pessoas, de acordo com o Ministério da Saúde da Faixa, controlado pelo Hamas, e transformou grande parte do enclave em escombros. Autoridades dos EUA acreditam que Sinwar hoje lidera o Hamas nas negociações sobre um acordo para cessar-fogo e a libertação de alguns reféns, que deve ter um novo capítulo na próxima semana.

'Eu os tratava de dia e chorava em casa de noite', diz Bitton

Bitton percebeu que, de certa forma, tudo o que ocorrera entre ele e Sinwar foi uma premonição dos terríveis eventos do presente. Ele entendia a mente de Sinwar tão bem quanto ou melhor do que qualquer oficial israelense. E sabia que o preço que o líder do Hamas exigiria para devolver os reféns poderia ser um que Israel não estaria disposto a pagar.

Mais: no fim daquele 7 de outubro de 2023, ele descobriu que a notícia estava ainda mais perto dele do que imaginava: os combatentes de Sinwar tinham capturado também seu sobrinho.

Há quase vinte anos, no dia em que salvou a vida de Sinwar, Bitton, aos 37, dirigia a clínica odontológica no complexo prisional de Beersheba, no deserto de Negev, no sul de Israel. Ele havia assumido o posto oito anos antes, em 1996, recém-saído da faculdade de medicina, acreditando que trataria de guardas e outros funcionários.

Em vez disso, seus pacientes incluíam alguns dos prisioneiros mais perigosos de Israel, entre eles combatentes do Hamas. Mais de uma vez Bitton estava perfurando os dentes de um terrorista quando chegavam notícias de que, fora das muralhas da prisão, outro ataque havia acontecido.

— Durante o dia, os tratava, e à noite, voltava para casa e chorava — ele disse. — Isso aconteceu muitas, muitas noites. Uma vez houve um ataque suicida perto de onde meus pais moravam. Dezesseis judeus foram mortos. Quem não choraria à noite? Quando você vê um bebê pequeno sendo levantado, quem não choraria?

Bitton frequentemente vagava pelas alas dos prisioneiros, em parte por curiosidade sobre como pensavam alguns dos inimigos mais fervorosos de Israel, e em outra porque a confiança que ele inspirava como médico o tornava um intermediário útil quando os administradores da prisão queriam saber o que estava acontecendo lá dentro. Bitton havia ensinado a si mesmo árabe. Ele se tornou uma presença tão regular nas celas que alguns prisioneiros suspeitavam, erroneamente, que ele pudesse ser um espião profissional.

Recentemente, Bitton estava trabalhando para persuadir Sinwar e outros a cooperarem com pesquisadores israelenses no estudo de atentados suicidas. Mas, na sala de exames, Sinwar não parecia reconhecê-lo.

— Quem é você? — Bitton lembrou de ele perguntar.

— Sou eu, Yuval.

— Uau, desculpe, eu não te reconheci — Bitton disse que o prisioneiro respondeu, antes de descrever seus sintomas.

Sinwar estava então cumprindo quatro sentenças de prisão perpétua.

Ele ficava de pé para rezar e depois caía. Enquanto falava, parecia entrar e sair do estado consciente. Mas, para Bitton, o sinal mais revelador foi a queixa de Sinwar de uma dor na parte de trás do pescoço. Algo está errado com o cérebro dele, o dentista disse a seus colegas, talvez um derrame, ou um abscesso. Ele precisava ir ao hospital, urgentemente.

Sem o tratamento, um dos líderes do Hamas teria morrido

O prisioneiro foi então levado às pressas para o Centro Soroka de Saúde, onde os médicos realizaram uma cirurgia de emergência para remover um tumor cerebral maligno e agressivo. Teria sido fatal se não fosse tratado.

Alguns dias depois, Bitton visitou Sinwar no hospital, junto com um policial da prisão enviado para verificar as medidas de segurança. Eles encontraram o prisioneiro na cama, ligado a monitores e a um soro, mas acordado. Sinwar pediu ao oficial, que também era muçulmano, para agradecer ao dentista.

— Sinwar pediu para ele me explicar o que significa no Islã o fato de eu ter salvo sua vida — lembrou Bitton. — Era importante para ele que eu entendesse, de um muçulmano, quão importante isso era no Islã, que ele, em suma, me devia sua vida.

Sinwar raramente, se é que alguma vez, falava com as autoridades prisionais israelenses. Mas, desde então, passou a se encontrar regularmente com o dentista, para beber chá e bater papo.

Eram dois homens com características surpreendentemente semelhantes. Os cabelos curtos, precocemente grisalhos. As sobrancelhas escuras e arqueadas de forma inquisitiva. As maçãs do rosto altas. Bitton, um homem loquaz e descontraído, frequentemente brincava com os outros prisioneiros, fazendo-os se abrirem sobre suas famílias ou esportes favoritos. Mas, com Sinwar, a conversa era sempre sobre negócios e dogmas.

— O Hamas vê a terra em que vivemos como a terra sagrada, 'Isto é nosso, vocês não têm direito de viver nesta terra. Não é (um clamor) político, mas religioso — disse Bitton.

Bitton o pressionava: Então não há chance de uma solução de dois Estados?

Nunca, dizia Sinwar.

Bitton respondia: Por quê não?

— Porque esta é a terra dos muçulmanos, não é para você. Eu não posso renunciar a esta terra — ele afirmava.

Sem ilusões

Bitton não tinha ilusões sobre com quem estava lidando. Uma avaliação prisional que o dentista ajudou a compilar descreve Sinwar como cruel, astuto e manipulador, um homem autoritário com "a habilidade de liderar multidões" e que "guarda segredos mesmo dentro da prisão, inclusive de outros prisioneiros”. Ainda assim, havia uma certa honestidade transacional em suas conversas. Cada homem tinha a ciência de que o outro tinha uma agenda.

Em 2007, para grande alarme em Israel, o Hamas assumiu o controle total de Gaza em uma violenta luta pelo poder com o Fatah, seu rival secular.

Esse foi o momento, decidiu Bitton, para canalizar os relacionamentos que havia construído com Sinwar e outros líderes palestinos presos para assumir um novo papel, um que diminuísse seus conflitos internos. Ele então se candidatou ao posto de oficial no Serviço de Inteligência Prisional. Após um curso curto, foi designado para a prisão de Ketziot em 2008.

— O homem que não entende os motivos e as raízes de seu inimigo não será capaz de impedir que essas organizações façam o que querem – argumentou.

De volta à manhã do dia 7 de outubro, o sobrinho de Bitton, Tamir Adar, acordou em Nir Oz, a menos de 2 milhas da fronteira com Gaza. Adar, 38 anos, é um agricultor, e normalmente se levantava cedo para ter tempo de aproveitar as longas tardes de verão, bebendo cerveja enquanto observava seus filhos brincarem.

Naquela manhã, enquanto os alarmes de ataque aéreo soavam, foguetes perfuravam o céu e tiros esporádicos ricocheteavam nas paredes, Adar deixou sua esposa e filhos no pequeno bunker de sua casa e saiu para se juntar à equipe de resposta de emergência armada da região.

Às 8h30, ele enviou uma mensagem pelo WhatsApp para sua esposa: ela não deveria abrir a porta do bunker, nem mesmo se ele implorasse para entrar. A comunidade havia sido invadida pelos terroristas.

Às 16h, os soldados finalmente chegaram e chamaram os moradores para fora de seus bunkers. Adar não foi mais encontrado. Sua mãe, Yael, ligou para o irmão dela, Bitton, e disse que ele havia desaparecido.

Cerca de 100 residentes de Nir Oz, o que corresponde a cerca de um quarto da população, haviam sido mortos ou sequestrados no ataque do Hamas. O mundo rapidamente soube que a avó paterna de Adar, Yaffa Adar, de 85 anos, estava entre eles, já que um vídeo viral mostrava militantes armados carregando a senhora para Gaza em um carrinho de golfe roubado. Levaria três semanas para que os oficiais israelenses pudessem confirmar que Tamir Adar também havia sido feito refém.

Nos anos anteriores, Bitton subiu na hierarquia do Serviço Prisional de Israel, tornando-se chefe de sua divisão de inteligência e depois vice-comandante, supervisionando 12 prisões antes de se aposentar em 2021. Sinwar traçou uma trajetória paralela. Após sua libertação, ele foi eleito para um cargo semelhante ao de ministro da defesa do Hamas. E em 2017, ele passou a supervisionar todos os aspectos da vida cotidiana em Gaza.

'No fim, ele nos vê como judeus'

Bitton tinha pouca esperança para a libertação de seu sobrinho. Ele sabia que, para Sinwar, os reféns eram um meio para um fim — libertar os prisioneiros palestinos deixados para trás e colocar a causa palestina de volta ao palco mundial. Mesmo que Sinwar soubesse quem era seu sobrinho, Bitton disse:

— No final, ele nos vê como judeus.

Ainda assim, em uma de suas últimas conversas, no dia em que Sinwar fora libertado, o líder do Hamas o agradecera novamente por salvar sua vida. Sinwar até pediu seu número de telefone, mas Bitton o lembrou que os funcionários da prisão são proibidos de se comunicar com líderes do Hamas do lado de fora. Agora, ele acreditava que Sinwar teria se sentido vinculado por uma espécie de código e que, se soubesse que o Hamas tinha seu sobrinho, pelo menos não permitiria que ele fosse maltratado.

— Além do fato de sermos inimigos, no fim das contas, também há a visão pessoal dele — disse Bitton. — Na minha opinião, ele o trataria da mesma maneira que eu, salvando sua vida, apesar de ser um inimigo.

Semanas após o ataque do Hamas, na esperança de que Sinwar ainda fosse um seguidor ávido da mídia israelense, Bitton decidiu dar uma entrevista na televisão. Nela, disse apenas que havia feito parte de uma equipe que havia diagnosticado Sinwar décadas antes, e que seu sobrinho estava entre os reféns. Em outras entrevistas, também minimizou seu papel na salvação do líder do grupo terrorista, pois, disse, estava preocupado com a forma como poderia ser percebido por uma nação em luto.

No final de novembro, a avó de Adar foi libertada em um acordo de cessar-fogo de uma semana que incluiu 105 dos reféns devolvidos, em sua maioria mulheres e crianças. O que Bitton sabia, mas não pôde dizer no momento de alegria de sua família, era que Sinwar manteria homens em idade militar, como Adar, para garantir sua própria sobrevivência.

'Por que você o salvou? Por que?'

No entanto, havia motivos para acreditar que seu sobrinho ainda estava vivo. Após a entrevista de Bitton na TV, a inteligência israelense descobriu que Sinwar estava perguntando sobre o bem-estar de Adar, e que subordinados haviam garantido que ele estava bem.

No dia 5 de janeiro, no entanto, o governo informou à família o que os novos dados de inteligência mostravam. Ferido enquanto defendia sua comunidade, Adar aparentemente morreu pouco tempo depois de ser arrastado para Gaza, um dos pelo menos 35 reféns que acredita-se estarem mortos. O Hamas ainda controla a vida de 125 detidos.

Bitton e sua irmã tentam rir do ”absurdo" de tudo o que viviam.

— Esses são nossos valores. Yuval nunca teria agido de forma diferente. Jamais. E eu também não — disse Yael Adar. — Mas no final, fomos destruídos. Com Sinwar, sei que ele quer nos destruir. Minha maior raiva é a de que ninguém defendeu nossas fronteiras (durante o ataque em outubro) .

Mas nem todos em Israel pensam assim. Sentados em um café em Eilat, cidade no Mar Vermelho para onde os sobreviventes de Nir Oz foram inicialmente realocados,Yuval e Yael são abordados por uma estranha. A mulher fixou o olhar em Bitton, aparentemente reconhecendo-o por sua entrevista na TV. Ela só tinha uma pergunta.

— Por que você o salvou? — ela perguntou. — Por quê?


Fonte: O GLOBO