Moradores relatam ao GLOBO as dificuldades derivadas da perda da moradia após as chuvas no Rio Grande do Sul

José Paulo Wainer consegue ver, de longe, ao menos um aspecto “menos pior” da tragédia que o deixou morando, desde o início da semana passada, em uma barraca improvisada na estrada que liga Porto Alegre ao município vizinho de Eldorado do Sul:

— Muitas casas desapareceram com o mar de lama. A minha, não. Ela só virou de lado.

A frase tem muitas leituras possíveis. Wainer, de 54 anos, enfrenta o frio com um chinelo de dedos, short de náilon, jaqueta leve e boné branco. Ele acredita que, quando a água baixar, iniciará um trabalho duro de limpeza e voltará a viver em sua casa, que colocará de pé novamente. Nem com o repique do Guaíba que aumentou o nível da água e a frente fria que jogou as temperaturas para 8 graus, cogitou ir viver em um abrigo. Da barraca ao lado, vigia a “casa que só virou de lado”, para evitar saques de posses, objetos e memórias que lá ficaram. E que ele também crê poder recuperar quando as águas partirem.

— Fazer o quê? A vida é assim. Estamos com os vizinhos, nossos bichinhos (três potros e um cachorro) e bebemos a água mineral que os voluntários trazem, lá do Gasômetro em Porto Alegre. Graças a Deus não perdemos ninguém, e quando a água baixar, começaremos tudo de novo, aqui ou, se for de fato impossível, em outro lugar — diz Wainer, que vive de bicos e havia investido suas economias na construção de um estacionamento nas imediações, em um terreno tomado pelas águas do Guaíba.

Ao longo da estrada, animais diversos (cães, galinhas, gansos, cavalos, bodes, carneiros) buscam os pontos mais altos para se abrigarem da água que tomou Eldorado por inteiro. A cidade de 41 mil pessoas desapareceu do mapa. Barracas espalhadas pelo que restou de acostamento mostram a quantidade de pessoas decididas a ali permanecerem. Se organizaram para fazer, durante o dia, rondas de barco para checar se não houve saque. E as embarcações que chegam com botes repletos de mantimentos e água, voltam, quase sempre, vazios para Porto Alegre.

Sobrevida com doações

Jaquetas do Grêmio, o casal Luís Carlos e Jane Maria Lopes se instalou em um viaduto de onde conseguem ver sua casa tomada pelas águas na Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre, a caminho de Eldorado, uma das áreas mais afetadas pelas enchentes da semana passada. Eles moram há mais de uma semana no carro que conseguiram salvar da enchente.

Luís Carlos e Jane Maria, com medo de saques no que restou de sua casa, passaram a viver no carro, no alto de um viaduto, de onde veem o imóvel — Foto: Edilson Dantas

— Colocamos tudo o que podíamos no carro e daqui ficamos viajando. Daqui dá para ver o rio enchendo com o repique da chuva, por exemplo. Calculo que foram mais 10 centímetros, o que vai atrasar a recuperação, demorar mais para voltarmos para nossa casa, que está bem ali atrás — aponta Luís Carlos, para um conjunto de casas cercadas por carros cobertos quase até o topo.

Jane diz que não foi tão complicado se adaptar à vida no automóvel, pois “não tínhamos mesmo muita coisa”. E que não conseguiram se distanciar muito do lar por medo de que saqueadores levassem os pertences que lá ficaram.

— Ficamos de olho daqui, e, quando conseguimos um barquinho emprestado, vamos lá e pegamos mais coisas, aos poucos. O pessoal do Pôr do Sol (marina vizinha onde entram e saem motos aquáticas que ajudam nos trabalhos de regate na ilha) nos trás mantimentos, inclusive água e, quando a fome aperta, vamos comer com o pessoal que está morando nas barracas na beira da estrada. Tem um grupo de dez pessoas com quem fizemos amizade. E sempre tem um prato a mais — diz Jane.

“Amamos nosso canto”

O casal, de 67 e 61 anos, respectivamente, trabalhou a vida toda como caseiros da sede campestre do Grêmio, que se localiza na ilha. Os filhos são casados, moram longe, e eles decidiram não pedir ajuda ao clube campeão mundial de futebol. Ao fundo, apontam para o cenário de destruição, com uma das imagens mais impressionantes, a de uma Scania com a frente virada para um lado e o fundo para o outro.

— Quando a água baixar vamos voltar para a nossa casa, limpar tudo e seguir nossa vida normal. Amamos nosso canto, e não temos medo de outra enchente. Se acontecer tudo de novo, enfrentaremos e voltaremos paro alto do viaduto até tudo voltar ao normal. Essa foi a pior das enchentes que tivemos, e se sobrevivermos a esta, será menos pior na próxima — diz Jane, enfatizando, assim como José Paulo Wainer, o “menos pior” em um cenário de devastação total.


Fonte: O GLOBO