Dado expõe brecha na decisão do governo de São Paulo de permitir registro voluntário de vídeo por parte da PM

Um experimento da universidade americana Stanford, feito com 470 policiais militares do Rio de Janeiro que atuavam na Rocinha entre 2015 e 2016, aponta que em sete de cada dez ocorrências os policiais desobedeceram o protocolo da câmera corporal exigindo que registrassem os eventos.

Os pesquisadores Beatriz Magaloni, Vanessa Melo e Gustavo Robles acompanharam 8.500 turnos de serviço do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) ao longo de um ano. O estudo, publicado em 2022, concluiu que os agentes mostraram resistência em acionar as câmeras, mesmo em atendimentos de rotina.

Apesar da resistência generalizada à gravação das ocorrências, o estudo mostra que o uso das câmeras levou a uma redução de 46% em vários tipos de atividades de policiamento consideradas proativas, como os chamados "enquadros" a residentes locais e as abordagens para revista.

Embora menos de um terço das interações entre polícia e a comunidade tenha sido registrada, os pesquisadores avaliaram que o fato de portarem câmeras em seus uniformes dissuadiu os agentes de interagirem com residentes. Como muitas interações entre civis e policiais na Rocinha tendem a ser agressivas, segundo relato dos moradores, a redução nas atividades policiais foi considerada um resultado positivo por residentes com experiência negativa com essas abordagens.

"O protocolo obrigava os agentes a registrar todas as interações com civis, e nós avaliamos que muitos policiais decidiram se abster dessas interações porque não queriam gravá-las. Mostramos que os policiais que optaram por fazer registros em vídeo queriam usar as imagens para inibir comportamentos hostis contra eles por parte da comunidade. Por outro lado, os policiais que se recusaram a gravar tinham maior chance de ter agredido 'uma ou muitas' pessoas no passado ou que relataram não terem sido supervisionados no uso das câmeras", dizem os pesquisadores no relatório.

O dado vai na contramão do argumento do governo de São Paulo na decisão de flexibilizar o uso das câmeras corporais na Polícia Militar, ao alegar que nenhuma ocorrência policial deixará de ser registrada porque existem regras obrigando seu registro. O edital para contratação de novos equipamentos, publicado na semana passada, desobriga gravações automáticas e ininterruptas do turno policial, delegando ao agente ou ao Centro de Operações (Copom) a atribuição de acionar o aparelho.

Especialistas em segurança pública defendem que a gravação deve ser automática e ininterrupta, como é feito atualmente, impedindo que o policial escolha qual momento vai registrar. A medida inibe que maus profissionais cometam irregularidades durante o expediente e pode se tornar uma prova a favor do próprio agente, em caso de conduta correta.

"É importante reforçar que o acionamento das câmeras é obrigatório e deverá ser feito pelo próprio policial ao iniciar uma ocorrência. Caso, por qualquer motivo, este acionamento não ocorra, o agente responsável pelo despacho da ocorrência no Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) acionará a gravação remotamente. Toda ocorrência é comunicada de imediato ao Copom e essa inovação do acionamento à distância não desobriga os policiais a ligarem o equipamento durante as ações, mas oferece uma garantia adicional de que as câmeras serão acionadas assim que o policial entrar em ação", diz a SSP.

Na semana passada, o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, afirmou que os PMs que não ligarem as câmeras durante ocorrências poderão ser punidos, como está previsto desde o começo do programa. Dados mostram, no entanto, que isso pode não bastar para levar ao cumprimento da regra.

Os pesquisadores de Stanford fizeram entrevistas e grupos focais com os policiais do Bope para tentar entender a cultura organizacional relacionada à adoção dos equipamentos e descobriram que ao menos 80% deles estavam "cientes da punição por não usar as câmeras", e apenas 9% disseram ter recebido alguma advertência por desobediência.

As câmeras acopladas nos uniformes da PM começaram por meio do Programa Olho Vivo, instituído durante o governo de João Doria, em 2020. Desde então, uma série de pesquisas tem apontado para resultados positivos tanto para a queda na letalidade policial quanto na proteção dos próprios agentes.

Em 2020, policiais militares em serviço mataram 659 pessoas ao longo do ano, após o registro de 716 mortes no período anterior. Em 2021, primeiro ano inteiro com a implementação do programa em alguns batalhões, o número caiu para 423. Em 2022 chegou à menor quantidade de mortes nas últimas décadas: 256. Tratam-se de dados oficiais da Polícia Militar, compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

As mudanças no programa Olho Vivo da PM

Quantidade de equipamentos
  • Como é: A Polícia Militar do Estado de São Paulo tem 10.150 câmeras corporais em funcionamento;
  • Como vai ficar: O edital vai substituir as câmeras existentes e ampliar em 17% o número de equipamentos, com previsão de contratação de 12 mil câmeras corporais.
Modo de gravação
  • Como é: As câmeras corporais utilizadas atualmente gravam ininterruptamente, com dois modos de gravação: o vídeo de rotina capta imagens durante todo o turno de serviço do policial (12 horas) em resolução 480p10fps sem som. Quando acionada, a câmera passa à gravação do vídeo intencional, com captação do som ambiente e resolução de 720p30fps. As câmeras não podem ser desligadas pelo policial, sendo acionadas automaticamente quando retiradas das docas, o equipamento onde ocorre o carregamento da bateria.
  • Como vai ficar: o edital determina que as novas câmeras gravem apenas quando acionadas pelo policial ou remoto, extinguindo a funcionalidade de gravação ininterrupta (elemento considerado como o mais importante para que o Programa Olho Vivo tenha os maiores impactos mensurados por estudos científicos no mundo).
Tempo de armazenamento
  • Como é: O tempo de armazenamento dos vídeos de rotina é de 90 dias e dos vídeos intencionais de 365 dias;
  • Como vai ficar: A nova licitação determina que os vídeos intencionais sejam armazenados pelo prazo de 30 dias, contrariando o que foi informado pela PMESP na ação do STF e a Recomendação nº 01/2024 do Conselho Nacional de Política Criminal.
Fonte: Nota divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, Instituto Sou da Paz e outras 15 entidades.

Fonte: O GLOBO