Região histórica dos tempos imperiais é reivindicada pelo líder russo como sendo parte integrante de seu território, em um conceito que serviu de pilar para a invasão de 2022

“Gostaria de lembrá-los que o que foi chamado ‘Novorossiya’ nos antigos dias czaristas — Kharkiv, Luhansk, Donetsk, Kherson, Nikolayev e Odessa — não fazia parte da Ucrânia. Aqueles territórios foram dados à Ucrânia nos anos 1920 pelo governo soviético. Por quê? Quem vai saber.”

Em abril de 2014, menos de um mês depois de oficializar a anexação da Crimeia, Vladimir Putin concedia a sua tradicional e longa entrevista coletiva anual. Na ocasião, deu pistas de suas visões sobre o país vizinho e delimitou um conceito central no pensamento político russo nos anos seguintes: a ideia da “Novorossiya”, ou a “Nova Rússia”. Na segunda-feira, em um discurso que marcou os 10 anos da anexação da Crimeia, o termo foi mais uma vez citado, em referência às novas anexações de terras ucranianas.

— As pessoas vivendo ali expressaram sua vontade de retornarem à família durante os dias da “Primavera Russa” — disse Putin, se referindo a protestos pró-Moscou na Ucrânia em 2014, supostamente incitados pelos próprios russos. — O caminho de volta para casa envolveu dificuldades e tragédias. Mesmo assim, conseguimos, e é um grande evento na história de nosso Estado

Modelo da Nova Rússia, de Alexander Dugin — Foto: Editoria de Arte

A “Nova Rússia” não é um termo inventado por Putin. Historicamente, esse nome se refere a uma região dentro do Império Russo, que compreendia partes do que hoje são o leste e o sul da Ucrânia, incluindo a Crimeia. Com a Revolução Russa e o fim da monarquia, teve início a guerra civil, e a Ucrânia foi uma das principais frentes de combate — as forças locais, que queriam se livrar do domínio de Moscou, foram derrotadas pelo Exército Vermelho, e o território, incorporado à União Soviética, agora sob o nome de República Socialista Soviética Ucraniana.

Para Putin, o grande erro de Vladimir Lenin foi ter permitido a “criação” desse Estado-satélite, com um idioma próprio, uma identidade própria e, mais importante, com territórios que ele considera serem parte integrante da Rússia. Várias dessas áreas compõem a Nova Rússia do presidente.

— A Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia, mais especificamente pela Rússia bolchevique e comunista — disse Putin no discurso que antecedeu o início da guerra, e que ignorou premissas históricas sobre a formação da Ucrânia. — Esse processo começou imediatamente após a Revolução de 1917, e Lenin e seus aliados o conduziram da forma mais suja possível em relação à Rússia, ao dividir, ao rasgar pedaços de seu território histórico.

Uma das primeiras declarações conhecidas de desdém de Putin em relação à Ucrânia foi feita em uma reunião do hoje quase defunto Conselho Rússia-Otan, em 2008. Segundo o jornal Kommersant, citando uma fonte com acesso a um encontro fechado, Putin se virou para o então presidente dos EUA, George W. Bush e disse:

— George, a Ucrânia nem é um Estado. O que é a Ucrânia? Parte de seus territórios é da Europa Oriental, e uma parte significativa foi doada por nós — afirmou, segundo o Kommersant, ao expressar sua oposição a uma eventual entrada do país na Otan.

O conceito da Nova Rússia ganhou os discursos anos depois, por influência do filósofo Alexander Dugin, considerado um dos “gurus” de Vladimir Putin. Para Dugin, o sul e o leste da Ucrânia são partes integrantes da civilização russa, e por isso devem voltar a fazer parte da Rússia. Ele considera que uma Ucrânia independente é um perigo existencial, que o controle do Mar Negro é “absolutamente imperativo”, e que o país vizinho deveria ser “um setor administrativo de um Estado centralizado russo”.

Em 2014, quando a Crimeia foi anexada e milícias pró-Moscou assumiram o controle de partes de Donetsk e Luhansk, Dugin criticou Putin por “não ter feito o bastante” e avançado sobre as outras regiões onde há um número significativo de russos. Curiosamente, em 2019, em um debate com o próprio Dugin, o filósofo francês Bernard Henry-Lévy afirmou que se as ideias dele fossem adiante, a Ucrânia se tornaria um campo de batalha para defender a arquitetura de segurança do mundo.

A visão de Dugin foi eventualmente abraçada por Putin e serviu como um dos pilares teóricos da guerra: para o líder russo, a Nova Rússia deveria “retornar” ao jugo russo.

“Nós nunca permitiremos que nossos territórios históricos e povos próximos de nós vivendo ali sejam usados contra a Rússia. E aqueles que tentarem fazer isso, gostaria de dizer que, dessa forma, vão destruir seu próprio país”, escreveu Putin em seu artigo “Sobre a união histórica entre russos e ucranianos”, de 2021.

Mas o que seria a Nova Rússia para o Kremlin hoje? Em 2014, na entrevista coletiva, Putin incluiu partes de Donetsk e Luhansk, além do sul (especialmente Odessa, completando o domínio da costa do Mar Negro) e também Kharkiv, no nordeste ucraniano — para Putin, a cidade, que tem uma grande população etnicamente russa, e que está sob feroz bombardeio desde o início da guerra, faz parte da “Rússia histórica”.

Essas áreas foram alvo, ao lado de Kiev, das mais intensas ações por terra e ar nos momentos iniciais da invasão, e algumas chegaram a ser dominadas. Kharkiv, por sua vez, presenciou uma retirada das tropas russas no momento em que parecia prestes a ser conquistada.

Há cerca de duas semanas, o ex-presidente e vice-chefe do Conselho de Segurança russo, Dmitry Medvedev, disse em um fórum de estudantes em Sochi que o discurso de que a Ucrânia “não é Rússia” precisa ser eliminado, sugerindo que todo o país vizinho deveria ser anexado por Moscou.

— A Ucrânia é definitivamente Rússia — disse Medvedev. — As partes históricas precisam voltar para casa.

Mapa do conflito na Ucrânia — Foto: Editoria de Arte

Com a guerra entrando em seu terceiro ano,Putin se refere abertamente a alguns dos territórios conquistados na Ucrânia como “Nova Rússia”, no caso, Kherson e Zaporíjia — ele cita Donetsk e Luhansk como “Donbass”, nome histórico daquela área no Leste. Neste momento, Putin parece conformado com o controle sobre essas regiões, mas como a História mostra, ele pode ser paciente antes de passos mais ousados, especialmente em uma guerra complexa e sem fim como a atual.

“Embora seja provável que o objetivo principal de Putin nessa guerra seja ganhar alguma forma de controle sobre a totalidade da Ucrânia, ainda parece incerto quanto território ucraniano ele planeja anexar para a Rússia”, escreveu, em artigo de setembro do ano passado, Björn Alexander Düben, professor da Universidade Jilin, da China. “Putin pode se ver como um ‘unificador’ das terras russas, mas com base em seus escritos e declarações, é difícil deduzir qual é a extensão de suas ambições territoriais.”


Fonte: O GLOBO