Vândalos destruíram mais de 200 itens históricos e obras de arte nos prédios dos Três Poderes

Por salões e corredores dos prédios dos Três Poderes, estilhaços e destruição de peças históricas mostraram o “cenário de guerra” encontrado no dia após os ataques do 8 de Janeiro. Enquanto invadiam Congresso, Supremo Tribunal Federal (STF) e Palácio do Planalto, os vândalos depredaram 233 obras, entre obras de arte, peças históricas e mobília, alguns datados do século XIX. 

Em um ano, a destruição dos acervos e o processo de restauração de peças comprometeram mais de R$ 21,1 milhões dos cofres públicos, direcionados a recompra, importação de material e até tratamento em outros estados. Mesmo com esforços das equipes, algumas obras só serão entregues ao longo de 2024 e outras seguem desaparecidas.

No STF, cerca de 135 peças com valor histórico foram depredados no 8 de Janeiro e outros 951 itens de uso diário foram perdidos, totalizando um prejuízo de R$ 12 milhões — desse total, R$ 3,4 milhões foram apenas para a reconstrução do plenário da Corte, além de R$ 1,6 milhão em material audiovisual da TV Justiça.

Foram restaurados 116 itens, incluindo 22 esculturas (como a estátua “A Justiça”, que fica em frente ao tribunal), 21 telas e tapeçarias e 50 itens de mobiliário. Três espelhos e nove cadeiras estão em processo de restauração, enquanto a recuperação de outros 15 itens (como vasos e mobiliários) ainda está sendo estudada.

Entre os bens históricos destruídos, estão mais de 20 itens de mobiliário confeccionadas ainda no Brasil Império, na década de 1880. Outros quatro painéis do fotógrafo Sebastião Salgado expostos no STF também foram danificados — dois ainda seguem exibidos na Corte, mesmo destruídas. Por outro lado, 106 itens não puderam ser repostos.

'Casa invadida e destruída'

Para os restauradores do STF, voltar ao prédio após os ataques simbolizou a tristeza de ver sua casa destruída. A equipe de Marcos Antônio de Faria trabalhou em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) para catalogar as 135 peças especiais danificadas. Para ele, o baque chegou quando viu a depredação do crucifixo pendurado atrás da cadeira da Presidência no plenário.

— É como se a nossa casa tivesse sido invadida e destruída. Às vezes, a gente não tem essa visão do dia a dia, mas lá é uma casa de todo brasileiro — conta.

A peça mais trabalhosa de reparar, uma mesa de cedro com tampo de mármore localizada no Salão Nobre da Corte, carrega a memória viva da invasão, mesmo após dois meses e meio de restauração. Usada pelos magistrados para assinaturas de acordos e documentos importantes em eventos com autoridades, a peça traz as marcas dos remendos feitos por Marcos Antônio. Essa memória é mantida pelo projeto Pontos de Memória, que exibe itens danificados, como um exemplar da Constituição que foi queimado.

— É para que a gente possa ter esse registro do que aconteceu, mas que sirva também para lembrar que nós nos levantamos. Tivemos esse ataque, mas no dia seguinte estávamos reconstruindo o tribunal, e ele não parou um minuto — diz Faria.

No Palácio do Planalto, a restauração das 24 peças de valor artístico-histórico depredadas será realizada em parceria com o Iphan, por meio de Acordo de Cooperação Técnica, e o prejuízo foi estimado em R$ 4,3 milhões. Entre elas, o relógio de Balthazar Martinot, presente recebido por Dom João VI e fabricado pelo relojoeiro a pedido do rei francês Luis XIV no século XVII, que se tornou símbolo da destruição do 8 de janeiro. Os trabalhos devem começar neste mês por equipes da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Do total de peças afetadas, três ficaram sob os cuidados de equipes especializadas da Secretaria-Geral e do Gabinete Adjunto de Gestão Interna: a escultura de ferro de Amilcar de Castro, a marquesa em metal e palha, de Anna Maria Niemeyer, e a mesa-vitrine de Sérgio Rodrigues.

Foram desembolsados R$ 297 mil para reconstruir o Palácio do Planalto, a maior parte com vidraçaria. Houve um dano de R$ 363 mil em equipamentos como computadores, monitores de vídeo e cadeiras. Além disso, foram extraviados bens no valor de R$ 142 mil.

Intercâmbio entre países

No Congresso Nacional, o prejuízo somou R$ 3,9 milhões, sendo R$ 2,7 milhões apenas na Câmara. Foram danificados 64 bens do acervo cultural (que inclui pinturas, esculturas e presentes), dos quais mais de 80% já foram recuperados. A Casa estimou um gasto de R$ 1,4 milhão para o reparo. Também foi desembolsado R$ 1,2 milhão com substituição de carpetes, persianas e com consertos nos sistemas elétrico e hidráulico.

Entre as peças que restam para serem restauradas está um vaso presenteado pela Assembleia Nacional da Hungria. Sem registro de toda a extensão do item, a Câmara entrou em contato com a embaixada do país europeu para realizar o conserto, mas o órgão também não tinha os registros. A representação húngara, no entanto, localizou o fabricante da peça, que enviou as fotos, e ainda manifestou interesse em enviar um novo vaso.

— É pelo valor cultural, o valor social, o valor internacional das relações entre os países. E agora esses objetos têm um novo valor histórico — destaca o diretor da Coordenação de Preservação de Conteúdos Informacionais da Câmara, José Raymundo Campos Filho.

Equipe do Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados atua no restauro de peças destruídas por vândalos no 8 de janeiro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Campos Filho relata que, durante o ataque, havia informações imprecisas e boatos sobre o tamanho da destruição. Quando os prédios públicos foram retomados, fragmentos de peças que eram da Câmara foram encontrados no Senado. A equipe de limpeza, porém, já tinha um treinamento sobre como agir em situações como essa, o que foi importante para garantir a integridade do material danificado.

Há ainda um item desaparecido, a The Pearl, presente de autoridades cataris recebido em 2019 pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A subtração do objeto, avaliado em R$ 5 mil, é investigada pelo Ministério Público Federal no caso envolvendo o 8 de Janeiro. Uma bola autografada pelo jogador Neymar também chegou a ser roubada, mas foi recuperada em Sorocaba (SP) e devolvida.

A restauração de todos os itens deve ser concluída até o final de 2024. No processo, as equipes da Câmara estão desenvolvendo novas técnicas, como a que está sendo empregada em um ovo de avestruz presenteado pelo Sudão.

No Senado, 21 obras de arte do acervo histórico da Casa depredadas passaram para os cuidados da equipe especializada na manhã seguinte aos ataques. Dois itens ainda devem ser entregues no primeiro semestre deste ano — um painel do artista Athos Bulcão e a pintura "Ato de Assinatura da Primeira Constituição", de Gustavo Hastoy, com reparos estimados em R$ 143 mil e R$ 800 mil, respectivamente.

— Um dos mais difíceis foi o móvel do século XIX, que foi totalmente destruído. Jogaram o tampo em um lugar, as gavetas em outro. Fomos catando os pedaços pelo palácio. E tínhamos um mestre artesão que conseguiu remontar ele como um quebra-cabeça, inclusive fabricando pequenas peças para fazer enxerto onde estava faltando pedaço. E ele ficou novinho, está perfeito de novo — explica a coordenadora do Museu do Senado, Maria Cristina Monteiro.

O restauro da tapeçaria de Burle Marx foi o mais complexo e custou R$ 250 mil ao Senado. A peça precisou ser transportada até São Paulo para passar pelos cuidados de técnicos da Universidade de São Paulo e de especialistas em processo que durou três meses. Ela será entregue simbolicamente em ato marcado para a próxima segunda-feira, dia 8, para marcar um ano dos ataques.

Reparação incompleta

Mesmo com o esforço incessante das equipes de restauro das sedes dos Três Poderes, 53 peças — o equivalente a cerca de 23% ou quase um quarto do total destruído — não conseguiram ser totalmente reparadas no ano passado, e algumas ainda aguardam liberação para começar os trabalhos.

No STF, 27 itens devem ser restaurados ainda neste ano — entre eles, exemplares que datam no século XIX. Um conjunto de quatro cadeiras Luís XVI que aguardam a aquisição de palhinha, localizadas próximas ao Salão Nobre da Corte, bem como uma série de bengaleiros, esculturas e itens em porcelana que ainda devem ser reparadas neste ano. Na Câmara, ainda faltam revitalizar três dos 14 objetos de arte e bens integrados às galerias destruídas. Entre elas, o Painel Ventura, projetado pelo artista Athos Bulcão em 1971, e maquetes que representam o Congresso.


Fonte: O GLOBO