Tensão regional cresce a medida que grupos ligados ao Irã e aliança encabeçada por EUA e Israel acumulam incidentes violentos na região

Em meio aos ataques recentes no Irã, no Iraque e no Líbano e ao aprofundamento das tensões com os rebeldes Houthis no Mar Vermelho, o chefe da Inteligência Militar de Israel, Aharon Haliva, pareceu ignorar a preocupação internacional de que a guerra entre o Estado judeu contra o Hamas em Gaza evolua para um conflito regional indiscriminado. 

Falando na cerimônia de graduação de uma turma de oficiais de inteligência, nesta quinta-feira, o general afirmou que o país vem lutando uma guerra "em múltiplas frentes" nos últimos 90 dias, e que a atividade de inteligência resultou em ataques bem-sucedidos contra inimigos "de Gaza ao Irã".

— Por quase 90 dias, o Estado de Israel e as FDI estiveram em uma guerra em várias frentes. As FDI, incluindo a Diretoria de Inteligência Militar, estão operando em todas as arenas e frentes, na defesa e no ataque — disse Haliva durante o evento, segundo registro do jornal Times of Israel. 

— A inteligência rica e de alta qualidade que a Direção de Inteligência Militar fornece salva a vida de muitos soldados todos os dias que arriscam as suas vidas no campo-de-batalha, e resulta em ataques generalizados contra os nossos inimigos, de Gaza ao Irã, em todas as arenas, face à desafios complexos.

Embora não tenha se referido a nenhuma ação específica, a fala do general adiciona mais um fator de desgaste a um cenário cada vez mais conflitivo. A menção ao Irã ocorre um dia após o país ser alvo de um ataque a bomba que matou dezenas de pessoas durante uma procissão — 84, segundo o último balanço, o que foi considerado como um ato terrorista até mesmo por potências ocidentais, inimigas de Teerã. O governo iraniano culpou Israel e os EUA pelas explosões. Washington negou, afirmando que a ação se assimilaria a uma agressão do Estado islâmico, grupo sunita rival do regime xiita dos aiatolás.

Duas bombas explodiram em Kerman, no sul do Irã, durante procissão em homenagem ao general morto Qassem Soleimani — Foto: Editoria de Arte

A crise com o Irã, país cujo programa nuclear é uma preocupação para o Ocidente e seus aliados pelo mundo há anos, é apenas uma das frentes em que Israel não tem se preocupado em escalar tensões. Fontes de segurança israelenses ouvidas pela Reuters afirmaram que o país lançou um ataque aéreo contra posições do Hezbollah no sul do Líbano, na madrugada desta quinta-feira, matando cinco soldados do movimento radical, que mantém laços com o Hamas e Teerã.

O ataque aéreo em território libanês ocorre na esteira de uma ação por drone que acabou com a morte de Saleh al-Arouri, número 2 da ala política do Hamas, em um bombardeio em Beirute ontem. O líder palestino foi sepultado nesta quinta, em um funeral com grande comparecimento de apoiadores. O ataque — que Israel não assumiu a autoria, mas que teve sua "assinatura" reconhecida por autoridades dos EUA e do Líbano — foi duramente criticado pelo governo libanês, que condenou a ação e apresentou uma queixa ao Conselho de Segurança da ONU, e também pela direção do Hezbollah, que prometeu retaliação.

Em um discurso na noite de quarta-feira, o chefe do poderoso grupo armado libanês, Hassan Nasrallah, classificou o ataque como um marco perigoso dentro do contexto atual, prometeu vingar-se do assassinato e ameaçou enfrentar qualquer conflito mais amplo com Israel como uma guerra irrestrita.

— Se o inimigo considerar travar uma guerra contra o Líbano, a nossa batalha não terá fronteiras nem regras — disse Nasrallah durante um pronunciamento na noite de quarta. — Não temos medo da guerra. Aqueles que pensam em entrar em guerra conosco irão arrepender-se. A guerra conosco terá um custo muito, muito, muito alto O crime de ontem não ficará impune.

Hasan Nasrallah prometeu vingança após morte de liderança do Hamas em bombardeio a Beirute — Foto: Anwar Amro/AFP

O conflito entre Israel e Hamas, iniciado com o brutal ataque terrorista lançado pelo grupo palestino contra o território israelense, rapidamente excedeu as fronteiras do Estado judeu e de Gaza. Dias após o começo da ofensiva israelense, confrontos com palestinos na Cisjordânia e escaramuças com células do Hezbollah na fronteira norte se tornaram uma constante. A preocupação de momento, contudo, é que esses embates limitados ganhem corpo e se transformem em uma guerra de intensidade muito maior, com alcance regional.

O ponto de tensão com maior impacto internacional, até o momento, é a crise de segurança no Mar Vermelho, onde o grupo rebelde Houthi — do Iêmen, que mantém laços com Irã, Hamas, Hezbollah e Síria — intensificou ataques contra embarcações mercantes de diversos países, em demonstração de solidariedade ao grupo terrorista palestino. 

A insegurança na importante rota de comércio, sobretudo de transporte de derivados de petróleo, provocou a comunidade internacional a lançar uma coalizão de defesa com cerca de dez países, liderada pelos EUA, para proteger os navios civis. A medida não cessou os ataques.

Em um comunicado conjunto, publicado na quarta-feira, Washington e seus aliados classificaram os ataques como "ilegais" e seus executores como "atores malignos", afirmando que os Houthis "arcarão com a responsabilidade pelas consequências caso continuem a ameaçar vidas, a economia global e o livre fluxo de comércio nas vias navegáveis críticas da região. A declaração não detalhou quais ações poderiam ser tomadas contra o grupo, que desde o início da guerra civil do Iêmen, controla o norte do país.

Na tentativa de baixar a temperatura na região, a Casa Branca enviou o secretário de Estado, Antony Blinken, ao Oriente Médio pela quarta vez, nesta quinta-feira. O detalhe da agenda de Blinken não foi divulgado pelas autoridades americanas, mas ao menos uma parada em Israel foi apontada como certa por um funcionário da administração, ouvido pela AFP em sigilo. 

O enviado especial dos EUA, Amos Hochstein, também visitou Israel hoje para reuniões com altos funcionários, em uma tentativa de evitar uma escalada com o Hezbollah ao longo da fronteira norte.

Forças rebeldes houthi em Sanaa, capital do Iêmen — Foto: Tyler Hicks/The New York Times

Apesar da iniciativa diplomática, a participação dos EUA nos últimos acontecimentos de segurança e defesa da região vem sendo cada vez mais questionadas pelos países envolvidos na crise. Além da acusação iraniana sobre o envolvimento americano no atentado contra a procissão de quarta-feira, autoridades de Irã e Iraque culparam Washington e seus aliados por um ataque a drone em Bagdá, nesta quinta-feira, que matou ao menos dois integrantes do Hashd al-Shaabi (Unidades de Mobilização Popular), milícia pró-iraniana no Iraque.

Um dos mortos foi identificado como vice-comandante de Operações de Bagdá, Mushtaq Talib al-Saidi, de acordo com o movimento al-Nujaba, uma das facções da coalizão, que classificou o militante como "mártir de um ataque americano"

Membros do Hashed al-Shaabi do Iraque, principal unidade paramilitar pró-Irã integrada às Forças Armadas, em frente ao seu quartel-general em Bagdá — Foto: Ahmad al-Rubaye/AFP

"As Forças Armadas iraquianas responsabilizam as forças da coalizão internacional por este ataque", disse o Gabinete do primeiro-ministro iraquiano, Mohamed Shia Al Sudani, em um comunicado, referindo-se a uma "escalada e agressão perigosa".

Apesar das muitas frentes de tensão, analistas acreditam que os últimos eventos não são significativos para aumentar a chance de um confronto de escala regional irromper no curto prazo. De acordo com Fabrice Balanche, diretor de pesquisa na Universidade de Lyon, a aliança com o Ocidente limita uma atuação mais robusta de Israel contra outros inimigos regionais, ao passo que Irã e Hezbollah não teriam interesse no conflito pela desvantagem bélica que carregam.

— [As autoridades de Israel] têm muita vontade de 'limpar' suas fronteiras, mas os americanos e os europeus os freiam. Os iranianos não querem um enfrentamento, e o Hezbollah também não, porque sabem que estarão em desvantagem — explicou o professor à AFP, acrescentando que a reação iraniana deve vir por meios indiretos, como novas perturbações ao comércio pelo Mar Vermelho.

Para Amal Saad, especialista em Hezbollah e professor da Universidade de Cardiff, o movimento libanês ficou em uma posição incomoda após o ataque israelense a Beirute. Saad afirma que o grupo terá que medir sua reação para que possa "restabelecer" sua força de dissuasão, ao mesmo tempo que não force Israel a lançar uma guerra total contra o Líbano.

Defesa Civil do Líbano inspeciona local de ataque a drone que matou líder do Hamas em Beirute — Foto: Anwar Amro/AFP

Karim Bitar, professor de Relações Internacionais na Universidade de San José, de Beirute, classificou o ataque à capital libanesa como "preocupante". No entanto, reputou a um possível erro de cálculo a maior chance de o conflito se ampliar.

— Ainda que nem Irã, nem Hezbollah, nem Israel tenham nenhum interesse em uma guerra aberta, um erro de cálculo, uma represália mal calibrada, poderia desembocar na conflagração [de um conflito] — afirmou. (Com NYT, Bloomberg e AFP).


Fonte: O GLOBO