Comunicações diplomáticas sobre tentativa de Nicolás Maduro de anexar região de Essequibo foram obtidas via Lei de Acesso à Informação

O governo da Guiana se “ressente” da falta de um apoio “mais enfático” de países vizinhos da América do Sul em torno da defesa do território de Essequibo, uma área rica em petróleo alvo de disputa com a Venezuela há mais de um século. Para autoridades do governo guianês, há um “desconhecimento internacional da real situação” do conflito com o regime de Nicolás Maduro.

As queixas de Georgetown constam de telegramas enviados pela embaixada do Brasil na Guiana à sede do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, obtidos com exclusividade pela equipe da coluna por meio da Lei de Acesso à Informação.

As mensagens foram escritas entre 25 de novembro e 10 de dezembro do ano passado, em meio à escalada da crise entre Georgetown e Caracas pelo controle de uma região de 160 mil km² – maior que o Estado do Ceará —, na fronteira entre os dois países.
Essequibo, que compreende 70% do território da Guiana, tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo, estimada em 11 bilhões de barris.

Em 3 de dezembro, eleitores venezuelanos rejeitaram em referendo a jurisdição da Corte Internacional de Justiça (CIJ), órgão das Nações Unidas sediado em Haia, sobre a disputa territorial na região, e apoiaram a anexação da região pela ditadura de Nicolás Maduro.

Em princípio, a Venezuela tem até abril deste ano para apresentar seus argumentos à CIJ.

Mesmo assim, o Brasil e países da Comunidade do Caribe iniciaram uma negociação para tentar obter um acordo. Mas os telegramas enviados pela então embaixadora do Brasil, Maria Clara Duclos Carisio, deixam claro que os guianenses não acreditam em uma negociação direta com a Venezuela.

Dois dias depois do referendo, em 5 de dezembro do ano passado, a embaixadora relatou ao Itamaraty o teor de uma conversa reservada que manteve com o ministro das Relações Exteriores da Guiana, Hugh Todd.

Na avaliação da então embaixadora, considerando que a Guiana “não tem Exército” – ou seja, não tem capacidade de pressão ou de intimidação – , “não haveria ambiente para qualquer negociação bilateral em bases equilibradas”.

“Quaisquer que sejam as chances da Guiana de obter ganho de causa na CIJ, as chances de êxito em uma negociação bilateral são nulas. O que se busca, portanto, é o apoio da comunidade internacional, em especial dos mandatários da América do Sul, no sentido de manifestar seu apoio”, escreveu Carisio.“Esta seria a principal razão para que a Guiana insista em obter de seus parceiros menções específicas ao tratamento do tema pela CIJ”, frisou.

Apesar do resultado do referendo, o chanceler Todd disse que, na visão do governo de Georgetown, o povo venezuelano “não quis dar apoio político a Maduro, já que somente 50% dos eleitores respondeu às perguntas apresentadas” no referendo.

De acordo com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, controlado pela ditadura, votaram 10,4 milhões de eleitores – o equivalente à metade dos 20,7 milhões habilitados. Desses, 95% teriam aprovado a criação de um estado venezuelano chamado Guiana Essequiba.

Na conversa com a embaixadora brasileira, Todd chamou o referendo de “a pior estratégia política executada por um chefe de estado” e avaliou que “o relativo apoio obtido não permitirá a Maduro justificar qualquer gesto unilateral para dar fim ao contencioso. O que não o impedirá de ‘subir o tom’ caso lhe seja proveitoso da ótica eleitoral”, relatou Carisio.

No telegrama em que relatou a conversa com o chanceler guianês, a embaixadora Maria Clara Duclos Carisio também contou sobre um breve encontro que teve com o presidente da Guiana, Irfaan Ali. Na ocasião, Ali “disse contar com o apoio do governo brasileiro para buscar o arrefecimento das tensões atuais em torno do contencioso do Essequibo”.

“Em conversa com o presidente Lula, o assunto já foi diversas vezes tratado e sabe-se que o PR Ali tem feito, junto a alguns países relevantes na região, gestões no sentido de contar com algum tipo de mediação do conflito”, relatou a embaixadora.

“Uma vez que a Venezuela declara não aceitar a jurisdição da CIJ e não há qualquer sinal de que venha a reconhecer que a região pertence à Guiana, entendimentos bilaterais seguem descartados e o governo da Guiana ressente-se da falta de um apoio mais enfático da parte dos governos da região”, escreveu, sem mencionar o nome de nenhum país.

Nesse mesmo dia em que o telegrama foi enviado, Maduro nomeou um de seus generais como “autoridade única” da região e chegou a apresentar um novo mapa da Venezuela, incluindo a província de “Guiana Essequiba”. O ditador ordenou que a nova versão seja publicada e divulgada nas escolas e universidades venezolanas.

As falas de Maduro foram consideradas uma “ameaça direta” por Irfaan Ali.

Mesmo assim, em 15 de dezembro os dois presidentes tiveram um encontro acompanhado pelo Brasil, e o venezuelano concordou em não usar a força na disputa por Essequibo, conforme informou o comunicado conjunto divulgado após a reunião.

No telegrama, Carisio lembra que a postura brasileira tem sido a de favorecer “a solução pacífica da controvérsia territorial, com respeito ao princípio da integridade territorial e a manutenção da paz e da segurança na região”.

Mesmo com os avisos e apelos dos guianenses, só em 29 de dezembro o Itamaraty divulgou uma nota afirmando que o governo brasileiro “acompanha com preocupação” os desdobramentos da disputa por Essequibo, mas sem fazer qualquer menção à Corte Internacional de Justiça (CIJ).

“O governo brasileiro acredita que demonstrações militares de apoio a qualquer das partes devem ser evitadas, a fim de que o processo de diálogo ora em curso possa produzir resultados, e está convencido de que instituições regionais como a Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e a Caricom (Comunidade do Caribe) são os fóruns apropriados para o tratamento do tema", afirmou o Itamaraty.

Carisio deixou o posto no início de dezembro para representar o Brasil na Bósnia, depois dos encontros com o chanceler e o presidente da Guiana. A sucessora, Maria Cristina de Castro Martins, ainda não assumiu porque sua nomeação ainda não foi publicada no Diário Oficial da União.

Conforme informou a equipe da coluna, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não esconde dos auxiliares mais próximos a irritação crescente com Maduro diante da crise entre a Venezuela e a Guiana.

Para integrantes do primeiro escalão do governo Lula ouvidos reservadamente pela equipe da coluna, Maduro apelou ao referendo e agora à ameaça de invasão da região do Essequibo em um gesto desesperado de “sobrevivência política”.

Na avaliação de ministros próximos ao presidente, o venezuelano atrapalha a estratégia lulista de exercer liderança sobre a América Latina.


Fonte: O GLOBO