Informação consta em correspondências trocadas entre Buenos Aires e Brasília, obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação

O Ministério das Relações Exteriores acompanhou com lupa o processo eleitoral da Argentina neste ano, que culminou na vitória do ultradireitista Javier Milei, a partir da embaixada em Buenos Aires. Durante o período de transição na Casa Rosada, o Itamaraty destacou uma “correção de rumos” por parte de Milei após a eleição em uma campanha marcada por um discurso agressivo contra o Brasil e outros países.

As informações constam em telegramas trocados entre Buenos Aires e Brasília entre julho e novembro deste ano e obtidos com exclusividade pela equipe do blog via Lei de Acesso à Informação.

A maioria deles é assinada pelo embaixador no país vizinho, Julio Glinternick Bitelli, indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A menção à mudança de comportamento de Milei consta em uma correspondência encaminhada ao Itamaraty por Bitelli no dia 23 de novembro, quatro dias após a vitória do político de extrema direita, em referência à relação do futuro presidente com o Brasil e seu contraparte brasileiro, Lula.

Na campanha, Milei chegou a declarar que romperia relações com líderes de governos “comunistas”, entre eles o petista – a quem já tinha xingado de corrupto e acusado de interferência eleitoral durante a campanha –, além da China e da Rússia.

Na véspera do telegrama em questão, o líder argentino e sua então chanceler designada, Diana Mondino, recuaram das críticas ao presidente brasileiro e a outras nações e sinalizaram que Lula seria, afinal, convidado para a posse no dia 10 de dezembro. Havia incertezas quanto ao cumprimento da formalidade.

“As recentes declarações de Milei e de sua designada futura chanceler parecem sinalizar propositadamente uma necessária correção de rumos em relação ao que foi expressado, atribuído ou inferido de lideranças da ‘La Libertad Avanza’ [coalizão partidária de Milei] durante a campanha presidencial, o que faz transparecer, ao menos no discurso, uma opção, ainda que tardia, pelo pragmatismo e por boa dose de realismo na condução das relações externas do país, em especial com seus maiores sócios comerciais”, observa o embaixador Bitelli.

Nesse mesmo trecho, o diplomata relata uma conversa entre Milei e o então presidente da Argentina, o peronista Alberto Fernández, no qual o incumbente teria dito ao sucessor que o presidente brasileiro é um pragmático.

“Se você acha que Lula é um comunista, é porque não o conhece”, teria dito o peronista, em diálogo atribuído à mídia argentina.

A mensagem em tom de puxão de orelha reflete o ápice do “climão” diplomático entre Brasil e Argentina, agravado pelo convite do ex-presidente Jair Bolsonaro para a posse antes de um aceno a Lula, como reza a praxe diplomática.

A convocação do presidente brasileiro foi de fato sacramentada três dias depois em uma viagem de Mondino a Brasília para uma reunião com o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Por fim, o petista não compareceu e enviou o chanceler como representante.

Como mostramos no blog no início do mês, a escolha foi vista por diplomatas do Itamaraty e auxiliares do presidente como um recado do governo Lula sinalizando insatisfação pelas críticas de Milei, mas sem fechar as portas para o diálogo com a Casa Rosada.

Isso porque Lula também poderia ter escalado para a viagem o vice-presidente Geraldo Alckmin, que o representou na posse de outro líder sul-americano de direita, o equatoriano Daniel Noboa.

A escolha de Vieira representou um gesto mais enfático do que Jair Bolsonaro havia feito em 2019, quando o peronista Fernández, com a ex-presidente Cristina Kirchner como companheira de chapa na vice, venceu o incumbente Mauricio Macri, apoiado abertamente pelo então mandatário brasileiro. Na ocasião, Bolsonaro enviou seu número dois, Hamilton Mourão.

Lula, por sua vez, evitou se manifestar formalmente no pleito argentino – embora seu apoio tácito ao candidato da situação, o então ministro da Fazenda Sergio Massa, seja tão inegável quanto sua proximidade com Alberto Fernández, o presidente demissionário. Mas, se de um lado o petista se esquivou de firmar posição, o presidente brasileiro dispôs de informações minuciosas sobre cada etapa das eleições na Argentina.

Os telegramas aos quais a coluna obteve acesso não se restringiram à eleição presidencial do país vizinho. A embaixada em Buenos Aires também monitorou as chamadas Prévias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (Paso) dos partidos argentinos, que funcionam como uma antecipação do prognóstico eleitoral.

Milei, que aparecia em terceiro lugar nas pesquisas da Paso, terminou isolado na primeira colocação nas prévias presidenciais. Ao avaliar as projeções que o colocavam na liderança da corrida presidencial, Maurício Fávero, o encarregado de negócios da embaixada, alertou que o desempenho dos institutos de opinião “relativizaria” o papel das projeções “como instrumento preciso de prognóstico eleitoral”.

De fato, o peronista Massa acabaria liderando a votação no primeiro turno, perdendo para Milei na segunda rodada por uma diferença de 11 pontos percentuais.

A representação brasileira acompanhou de perto até mesmo disputas estaduais, com o objetivo de informar o Itamaraty sobre o contexto eleitoral e a tração das principais forças políticas argentinas rumo ao primeiro turno, realizado em 22 de outubro.

Na mesma correspondência, a embaixada fez um extenso relato sobre um escândalo político de grande repercussão que balançou o peronismo e a candidatura de Massa envolvendo o chefe de gabinete do governador de Buenos Aires, fotografado em um iate luxuoso na Itália em meio à crise econômica no país.

“Os casos mencionados poderão pender a balança da opinião pública para os candidatos da oposição”, observa Maurício Fávero em um telegrama de 4 de outubro para o MRE. “O cenário eleitoral torna-se cada vez mais incerto”.

Outro episódio que mereceu a atenção da diplomacia brasileira foram os saques ocorridos em diversas províncias argentinas a dois meses do pleito presidencial. Em que pese a ocorrência de atos criminosos, a embaixada relatou ao Itamaraty que havia “boa dose de sensacionalismo na cobertura de tais fatos” pela imprensa.

As comunicações diplomáticas às quais a equipe do blog teve acesso são anteriores à posse de Milei e, por isso, se debruçam sobre a disputa eleitoral e o período de transição.

Há perfis detalhados dos principais assessores de Milei, além de seus potenciais ministros, para o desenho de possíveis cenários nas relações entre os países – em especial na esfera econômica e comercial. Um dos telegramas citava Luis Caputo como potencial ministro da Economia, o que eventualmente se confirmou.

As críticas do então presidenciável ao Mercosul já estavam no radar da diplomacia brasileira desde pelo menos agosto, quando a embaixada em Buenos Aires reforçou as críticas do ultradireitista ao bloco comercial no perfil biográfico elaborado pelo embaixador Bitelli.

Após a eleição, no dia 24 de novembro, o embaixador reportou a Brasília o perfil dos participantes de um encontro da equipe de transição sobre tecnologia e indústria – temas caros ao Mercosul – com potenciais integrantes de um gabinete Milei.

A partir dos telegramas, nota-se ainda uma ênfase no relatório de figuras que poderiam garantir alguma estabilidade ao governo de Milei, eleito por um partido sem maioria no Congresso e que, agora, se vê pressionado pelas ruas após anunciar uma série de reformas sem precedentes consolidadas em apenas uma legislação, que acabou batizada de “Lei Ônibus”.

Um desses casos é o do ministro da Justiça, Mariano Cúneo Libarona, apontado nos relatórios do Itamaraty como uma figura capaz de abrir um canal institucional de diálogo entre o Executivo e o Judiciário pela sua experiência como advogado e, no passado, enquanto magistrado.

O monitoramento de eleições por embaixadas é uma atividade de praxe das representações diplomáticas, especialmente em casos de países estratégicos. Mas os documentos ajudam a elucidar quais informações subsidiaram o governo Lula na leitura dos cenários do país vizinho – e quais os principais pontos de interesse da administração petista em relação ao novo ocupante da Casa Rosada.

Embora Lula não tenha se posicionado oficialmente, marqueteiros ligados ao PT trabalharam na campanha de Massa em Buenos Aires já no primeiro turno e o partido apoiou formalmente o peronista na segunda rodada.

Antes do triunfo de Milei, a perspectiva da vitória do ultradireitista já preocupava o entorno de Lula pela postura bélica contra o Brasil. A Argentina, o terceiro maior parceiro comercial do país, é peça-chave no acordo entre o Mercosul e a União Europeia e na ambição do Itamaraty de Lula de retomar o papel de liderança do Brasil na região.

Mas, além da tentativa de distensionamento às vésperas da posse, há no campo da diplomacia um elemento facilitador: Milei decidiu manter o peronista Daniel Scioli, que chegou a concorrer à presidência contra Mauricio Macri em 2015, como embaixador da Argentina em Brasília para deixar as portas abertas para o diálogo com Lula pouco mais de três meses após assegurar que não faria negócios com o presidente brasileiro.

Até o momento, a realidade se impôs ao novo presidente argentino, que já acena a Brasília e a Pequim em um flagrante contraste com suas promessas eleitorais. Porém, ainda é cedo para determinar se Milei “corrigirá os rumos”, nas palavras do embaixador Bitelli, de sua política externa em relação ao Brasil para além da retórica.


Fonte: O GLOBO