Pelas centenas de salas e eventos paralelos da COP, as diferentes narrativas interagem menos que o necessário para furar as bolhas

É a minha primeira experiência numa COP, então não dá para imaginar que eu já domino a dinâmica do que acontece por aqui. No meu quarto dia de intensa programação de atividades, minha conclusão parece tão simples quanto verdadeira: por aqui, cada um no seu quadrado. Muitas atividades e declarações paralelas desviam um pouco o foco das negociações principais. Uma COP super estendida de público onde sinto que A não fala com B. As pessoas não circulam tanto para fora de suas próprias bolhas quanto eu imaginava.

Existem barreiras de linguagem, e não me refiro apenas a idiomas, e sim aos léxicos exclusivos que se estabelecem entre banqueiros, governantes, diplomatas, cientistas, ativistas, filantropos e outros tantos, impedindo que as trocas se aprofundem e as transformações sejam aceleradas. 

Isso explica um pouco o chamado feito pelo Dr. Singh, um especialista consultor do G20 que numa rodada com representantes de bancos internacionais pontuou: “unir, agir, entregar é o lema que nos move, mas não estamos entregando”, para referir-se à incapacidade dos grandes bancos em fazer chegar recursos para adaptação e mitigação dos impactos da emergência climática até à ponta, até às comunidades mais atingidas em diferentes lugares no planeta.

Tudo a ver com a oficina de ideias organizada pela filantropia internacional para enfrentar as barreiras que têm impedido que as organizações do terceiro setor atuem em conjunto no enfrentamento à emergência climática. 

Um grupo de organizações dos quatro cantos do mundo se esforçou para entender os obstáculos, identificar os espaços onde pode haver associação de esforços e, o mais importante, o “como” isso pode acontecer. 

Palavras como desburocratizar e simplificar foram repetidas pelos participantes. Creio que teria sido mais interessante e produtivo se também estivessem ali os banqueiros que eu acabara de ouvir e os ativistas que encontrei em outros espaços. Apenas um diálogo mais inclusivo e diverso já vai ajudar bastante a vencer tais dificuldades de atuar em conjunto.

Vamos examinar a discussão sobre a transição energética, uma das agendas relevantes na agenda de mudanças climáticas. Lideranças amazônidas estão preocupadas. Entendem que os governos insistem num modelo baseado em grandes usinas hidrelétricas que represam os rios da região, gerando mais problemas que soluções.

É como se posiciona Auricélia Arapiun, coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) ao se referir ao problema. O modelo predominante, de grandes usinas geradoras, mantém na região amazônica uma situação de pobreza enérgica, como afirma Lise Tupiassu, pesquisadora da Universidade Federal do Pará. As populações que vivem na Amazônia, sequer estão conectadas ao sistema nacional de distribuição energética.

Grande parte vive da eletricidade que vem de geradores a combustível fóssil, e dispositivos legais impedem que recursos de políticas públicas sejam utilizadas para substituir esses equipamentos por geradores de eletricidade fotovoltaica, por exemplo. Mas, por quê? Ninguém sabe explicar.

A interferência das hidrelétricas na bacia hidrográfica da região norte produz um resultado preocupante para quem acompanha a evolução dos recursos naturais ao longo do tempo. O pesquisador Tasso Azevedo do MapBiomas informa que entre 1985 e 2021, a floresta amazônica perdeu 84 milhões de hectares de cobertura vegetal, o equivalente a duas vezes o território da Alemanha. 

Em meio à área mais devastada, é possível encontrar algumas ilhas de conservação que, quando identificadas, comprovam o que muita gente já sabe: elas correspondem às áreas indígenas, quilombolas e a reservas extrativistas (Resex), principalmente. 

E quando olhamos para um mapeamento que coloca a questão hídrica em primeiro plano, é possível identificar que, no mesmo período, a região perdeu 9% da superfície coberta por água na época das chuvas. Nos estudos do MapBiomas as grandes hidrelétricas na amazônia, ao fazerem represamentos, agravam esse quadro.

Essas interferências no fluxo dos rios geram alterações na dinâmica do bioma amazônico, com consequências em vários níveis, que vão desde a alimentação até o campo do simbólico e cosmológico. 

A "morte do rio" fecha o portal para a "aldeia espiritual", como explica Eliane Xunakalo, líder da Organização dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT). Também para ela, sejam grandes ou pequenas, o modelo das hidrelétricas, não é o adequado para quem vive na região. Preferem evitar torres, fiações, colocação de torres e abertura de trajetos que derrubam a mata desnecessariamente.

Kátia Penha, da Coordenação Nacional de Articulação dos Quilombos (CONAQ), vai além ao apontar para um viés de violência social na exclusão energética que atinge as populações quilombolas e indígenas. Para ela, iniciativas de eletrificação convencional trazidas pelas grandes empresas, em geral respaldadas pelo Estado, tendem a levar para a degradação ambiental em territórios preservados pelas comunidades tradicionais sem nem mesmo atendê-las. 

Assim como projetos de expansão agrícolas que se apoiam num discurso de alternativa energética, a exemplo da expansão de plantação de dendê para produção de biocombustível, que ao fim resultam em monocultura e derrubada da floresta. São o que Kátia chamou de "falsas notícias sobre falso desenvolvimento".

Não deixa de ser chocante ouvir em outros espaços da COP os representantes do governo falando sobre a beleza da matriz energética limpa do Brasil, como um grande valor do país. Ou seja, estas diferentes representações aparentemente não estão se falando. Daí resultam situações como a passagem de uma linha de energia sobre as terras de comunidades na floresta, sem atendê-las. Bem ali debaixo, geradores a diesel continuam sendo utilizados.

É por causa deste tipo de disparidade que tem sido uma constante em minha mente a imagem destes grupos de pessoas em suas ilhas narrativas. Não havia pessoas do governo se manifestando sobre a fala dos ativistas. Nenhum presidente de banco ali, para entender que as comunidades talvez resolvessem seu desafio de transição energética apenas com microcrédito para viabilizar geração de energia elétrica. 

E também não encontrei esses ativistas na sala em que os representantes dos bancos se manifestaram sobre sua dificuldade de estabelecer contato, de entregar. Há algo de errado nisso tudo, o melhor é que todos se entendam rápido, pois o tempo está se esgotando.

*João Alegria é professor e atual Secretário Geral da Fundação Roberto Marinho. Viaja a COP 28 a convite do GIFE - Grupo de Institutos, Fundações e Empresas.


Fonte: O GLOBO