A ação de Harvard é para ser uma boa alternativa à profusão de conteúdos (bons e ruins) sobre saúde mental nas redes sociais
Um dia, em fevereiro, um convite da Universidade de Harvard chegou à caixa de entrada de Rachel Havekost, uma influenciadora de saúde mental do TikTok e bartender de meio período em Seattle que gosta de brincar que sua principal qualificação são 19 anos de terapia.
O mesmo e-mail chegou para Trey Tucker, também conhecido como na rede social (@ruggedcounseling), um terapeuta de Chattanooga, Tennessee, que discute estilos de apego em sua conta no TikTok, às vezes enquanto carrega fardos de feno na carroceria de uma caminhonete.
Os convites também chegaram a Bryce Spencer-Jones, que fala com seus espectadores sobre rompimentos enquanto olha com ternura para a câmera, e a Kate Speer, que narra suas crises de depressão com humor irônico, confidenciando que não escova os dentes há dias.
Vinte e cinco destinatários leram os e-mails, que os convidavam a colaborar com cientistas sociais da Escola de Saúde Pública TH Chan, em Harvard. Eles não estavam acostumados a serem tratados com respeito pela academia; vários concluíram que as cartas eram pegadinhas ou tentativas de trote e as excluíram.
Eles não sabiam – como poderiam? – que uma equipe de investigadores os observava há semanas, dividindo um exército de influenciadores da saúde mental em algumas dezenas de pesos pesados selecionados pelo seu alcance e qualidade.
O cirurgião-geral descreveu a saúde mental dos jovens na América como “a crise de saúde pública definidora do nosso tempo”. Para esta população vulnerável e de difícil acesso, as redes sociais servem como fonte primária de informação. E assim, durante alguns meses nesta primavera, os influenciadores se tornaram parte de uma experiência de campo, na qual cientistas sociais tentaram injetar conteúdo baseado em evidências nos seus feeds.
— As pessoas procuram informação e o que veem é o TikTok, o Instagram e o YouTube — afirma Amanda Yarnell, diretora sênior do Centro de Comunicação em Saúde da Escola Chan — quem são os guardiões da mídia nessas áreas? Esses são esses criadores. Então, estávamos analisando como podemos mapear essa nova realidade? — completou.
A resposta a essa pergunta ficou clara em agosto, quando uma van transportando uma dúzia de influenciadores parou ao lado do campus da Faculdade de Medicina de Harvard. Tudo no espaço, as suas colunas e os lemas latinos esculpidos em granito, indicavam aos visitantes que tinham chegado ao templo alto do estabelecimento médico.
Cada um dos visitantes se parecia com seu público: tatuados, com bonés de beisebol ou botas de cowboy ou brincos grossos que diziam a palavra "amor". Alguns eram psicólogos ou psiquiatras cujos TikToks eram uma atividade paralela. Outros construíram franquias falando francamente sobre suas próprias experiências com doenças mentais, descrevendo transtornos alimentares, mutismo seletivo e tentativas de suicídio.
No aveludado Quad da faculdade de medicina, pareciam turistas ou excursionistas. Mas juntos, em todas as plataformas, eles conquistaram um público de 10 milhões de usuários.
Etapa 1: os assuntos
A partir da esquerda, capturas de tela dos feeds TikTok da Speer, Khalida Himes, Rachel Havekost e Dr — Foto: Reprodução/TikTok
Samantha Chung, 30 anos, que posta sob o nome @simplifying.sam no TikTok, nunca conseguiria explicar à mãe o que ela fazia para viver.
Ela não é médica de saúde mental – até recentemente, trabalhava como corretora imobiliária. Mas há dois anos, um vídeo TikTok que ela fez sobre “manifestar”, ou usar a mente para provocar a mudança desejada, atraiu tanta atenção que ela percebeu que poderia cobrar dinheiro por coaching individual e largou seu trabalho diário.
No início, Samantha reservou consultas de uma hora por US$ 90 (equivalente a R$ 454,86), mas a demanda permaneceu tão alta que agora ela oferece aconselhamento em “contêineres” de três e seis meses. Ela não vê necessidade de fazer pós-graduação ou obter uma licença; sua abordagem, como ela diz, “ajuda os clientes a se sentirem fortalecidos, em vez de diagnosticados”. Ela tem um podcast, um projeto de livro e 813 mil seguidores no TikTok.
Esta conquista, no entanto, pouco significou para seus pais, imigrantes da Coreia que esperavam que ela se tornasse médica. “Eu realmente me considerava alguém que faz vídeos em seu apartamento”, disse Samantha em entrevista ao The New York Times.
O trabalho de um influenciador pode ser isolante e desgastante, longe do glamour ensolarado que muitos imaginam. A digital influencer Rachel Havekost, de 34 anos, estava lutando para saber se poderia continuar. Após anos lutando contra um transtorno alimentar, ela estava se sentindo estável, o que não gerava conteúdo de saúde mental; esse foi um problema.
O outro problema era dinheiro. Ela é meticulosa com acordos de patrocínio e ainda precisa cuidar do bar em meio período para sobreviver:
— Recusei uma marca de sorvete que queria me pagar muito dinheiro para postar um TikTok dizendo que tinha baixo teor de açúcar. Isso foi péssimo, porque tive que recusar o equivalente ao meu aluguel — conta Rachel.
Em Harvard, os influenciadores foram tratados como dignitários, recebendo mercadorias de marca e buffets de almoço enquanto ouviam palestras sobre qualidade do ar e comunicação em saúde. De vez em quando, os palestrantes usavam jargões, se referindo a modelos de regressão multivariada e ao modelo de Bronfenbrenner da teoria do comportamento.
Durante um intervalo, Jaime Mahler, conselheira licenciada de Nova York, comentou sobre isso. Em seus vídeos, ela (a influencer Rachel) se orgulha de destilar ideias clínicas complexas em pepitas digeríveis. Nesse aspecto, explica, "Harvard poderia aprender muito com o TikTok".
— Ela continuou usando a palavra "heurística", e isso foi, na verdade, uma distração genuína para mim — disse Mahler sobre um palestrante, acrescentando — me lembrei dela me contando o que era no começo, e eu não queria pesquisar no Google e ficava me distraindo, então pensei "ah, ela usou de novo".
Mas a principal coisa que os convidados queriam expressar era a gratidão. “Passei meus 20 anos em uma ala psiquiátrica tentando me formar na faculdade”, conta Kate Speer, 36 anos. “Entrar nessas salas em Harvard e ser abraçada com amor – honestamente, não passa de um milagre”, completou.
Samantha ficou tão inspirada que disse à multidão reunida que agora iria postar como ativista. “Estou saindo dessa sabendo a verdade, que sou uma líder de saúde pública”, celebrou. Quando Meng Meng Xu, uma das pesquisadoras da equipe de Harvard, ouviu isso, ficou arrepiada. Isso era exatamente o que ela esperava.
Etapa 2: O experimento de campo
Muitos acadêmicos têm uma visão negativa do TikTok sobre saúde mental, o vendo como um "Velho Oeste" de conselhos não científicos e generalização excessiva. Os investigadores descobriram que as redes sociais muitas vezes prejudicam as diretrizes médicas estabelecidas, alertando os telespectadores sobre tratamentos baseados em evidências, como terapia cognitivo-comportamental ou antidepressivos, ao mesmo tempo que aumentam o interesse em abordagens arriscadas e não testadas, como a retenção de sêmen.
O TikTok, que tem lutado para moderar esse tipo de conteúdo, disse recentemente que direcionaria os usuários que procuram uma série de condições, como depressão ou ansiedade, para informações do Instituto Nacional de Saúde Mental e da Clínica Cleveland.
Na pior das hipóteses, dizem os investigadores, os feeds das redes sociais podem servir como uma câmara de eco escuro, bombardeando os jovens vulneráveis com mensagens sobre automutilação ou distúrbios alimentares.
“Seu coração afunda”, lamentou Corey H. Basch, professora de saúde pública da Universidade William Paterson que liderou um estudo de 2022 analisando 100 vídeos do TikTok com a hashtag #mentalhealth.
— Se você está se sentindo deprimido e tem uma perspectiva sombria, e por algum motivo é isso que o atrai, você cairá nesta toca do coelho. E você poderia ficar sentado ali por horas assistindo a vídeos de pessoas que só querem morrer — explicou a professora.
Corey duvidava que os criadores de conteúdo pudessem ser parceiros úteis para a saúde pública. “O objetivo dos influenciadores é ganhar dinheiro com seu conteúdo”, afirmou ela.
Já a diretora sênior do Centro de Comunicação em Saúde da Escola Chan, Amanda Yarnell, não compartilha dessa opinião. Química que se dedicou ao jornalismo, ela considerou o TikTok “um lugar rico e emocionante” para cientistas. Ela vê os influenciadores – ela prefere o termo mais respeitoso “criadores” – não como amadores ávidos por cliques, mas como empresas de mídia independentes, que fazem escolhas cuidadosas sobre parcerias e, às vezes, são motivadas pelo altruísmo.
Além disso, ressalta ela, eles são bons no que fazem. “Eles entendem o que seu público precisa”, afirma Amanda:
— Eles contaram muitas histórias que permitiram que o estigma desaparecesse. Eles têm desempenhado um papel importante em convencer as pessoas a falar sobre diferentes preocupações de saúde mental. Eles são um parceiro de tradução perfeito.
Esta não é a primeira vez que os especialistas em saúde pública de Harvard tentam pegar carona na cultura popular. Em 1988, como parte de uma campanha para prevenir mortes no trânsito, pesquisadores pediram aos redatores de programas de televisão do horário nobre, como “Cheers” e “LA Law”, que escrevessem referências a “motoristas designados”, um conceito que era, na época, inteiramente novo para os americanos. Esse esforço foi notoriamente bem-sucedido; em 1991, a frase era tão comum que apareceu no dicionário Webster.
Inspirada por este esforço, Amanda concebeu uma experiência para determinar se os influenciadores poderiam ser persuadidos a divulgar mais informações baseadas em evidências. Primeiro, sua equipe desenvolveu um grupo de 105 influenciadores que eram proeminentes e responsáveis: nenhum endosso de pílulas dietéticas, nenhum conteúdo de “cinco sinais de que você tem TDAH”.
Os influenciadores não seriam pagos, mas, idealmente, seriam conquistados para a causa. Quarenta e dois deles concordaram em fazer parte do estudo e receberam kits de ferramentas digitais organizados em cinco “temas centrais”: dificuldade de acesso a cuidados, trauma intergeracional, ligações mente-corpo, efeito do racismo na saúde mental e ansiedade climática.
Um grupo menor de 25 influenciadores também recebeu atenção generosa pessoalmente. Eles foram convidados para fóruns virtuais de uma hora de duração, reunidos em um canal coletivo do Slack e, finalmente, hospedados em Harvard. Mas os temas centrais eram o que os pesquisadores estavam observando. Eles ficariam de olho nos feeds dos influenciadores e mediriam quanto do material de Harvard acabaria online.
Etapa 3: Este estudo tem limitações
Um mês depois da reunião, a influenciadora Rachel estava mais uma vez se sentindo esgotada. Não que ela não se importasse com o seu dever como líder de saúde pública – pelo contrário, explicou, “toda vez que posto algo agora, penso em Harvard”.
Mas ela não viu uma maneira simples de integrar mensagens de saúde pública em seus vídeos, que frequentemente a mostram dançando desinibidamente ou olhando para o espectador com uma expressão de amor incondicional enquanto o texto passa. Seu público conhece seu estilo de comunicação, afirmou; citações de estudos não pareceriam mais autênticas do que realce de decote.
O influencidador Tucker, em Chattanooga, chegou a uma conclusão semelhante. Ele tem 1,1 milhão de seguidores no TikTok, então sabe quais temas atraem espectadores. Trauma, ansiedade, relacionamentos tóxicos, personalidades narcisistas, “essas são a erva-dos-gatos, por assim dizer”, contou ele. “Basicamente, coisas que alimentam a mentalidade de vítima.”
Ele tentou alguns vídeos baseados em pesquisas de Harvard – por exemplo, sobre a forma como o cérebro responde ao som da água – mas eles tiveram um desempenho ruim com seu público, algo que ele pensou que poderia ser uma função do algoritmo da plataforma.
— Eles não estão realmente tentando ajudar a divulgar boas pesquisas. Eles estão tentando manter os olhos atentos para que possam manter o tempo de exibição o maior tempo possível e repassar isso aos anunciantes — lamentou Tucker.
Foi diferente para a influenciadora Kate. Ao retornar de Harvard, ela recebeu um e-mail de S. Bryn Austin, professora de ciências sociais e comportamentais e especialista em transtornos alimentares, propondo que colaborassem em uma campanha para proibir a venda de comprimidos para perder peso a menores em Nova York.
A Kate estava exultante. Ela começou a trabalhar montando um rolo e uma proposta de financiamento. À medida que o verão se transformava em outono, sua vida parecia ter virado uma esquina. “É isso que eu quero fazer. Quero fazer isso para sempre, em vez de, um vídeo sobre o uso de brilho labial”, contou a influencer.
Etapa 4: efeitos no nível do sistema
Em uma sala de conferências com vista para o rio Hudson, Amanda e um dos seus co-autores, Matt Motta, da Universidade de Boston, apresentaram os resultados da experiência.
Funcionou, anunciaram. Os 42 influenciadores que receberam os pontos de discussão de Harvard tinham 3% mais probabilidade de postar conteúdo sobre os temas centrais que os pesquisadores lhes haviam fornecido. Embora possa parecer um efeito pequeno, pontua Motta, cada influenciador teve um público tão grande que o conteúdo adicional foi visto 800.000 vezes.
Esses sucessos tinham pouca semelhança com estudos revisados por pares. Eles apareciam no perfil de uma enfermeira psiquiátrica (@drkojosarfo), com 2,4 milhões de seguidores, dançando em uma cozinha ao lado de um texto no link mente-corpo, ou outro usuário como @latinxtherapy lançando sombra sobre as seguradoras enquanto sincronizava os lábios com o influenciador Shawty Bae.
A aceitação pareceu ser impulsionada pela distribuição de materiais escritos, sem nenhum efeito adicional entre os sujeitos que tiveram interações profundas com o corpo docente de Harvard. Isso foi inesperado, afirma Amanda, mas foi uma boa notícia, já que os kits de ferramentas digitais são baratos e fáceis de escalar:
— É mais simples do que pensávamos. Esses materiais escritos são úteis para os criadores — explicou.
Mas o maior efeito foi algo que não apareceu nos dados: a formação de novos relacionamentos. Sentados ao lado da Amanda enquanto ela apresentava os resultados do experimento estavam dois de seus participantes: a influenciadora Kate, com seu cão de serviço, Waffle, que é treinado para apalpá-la quando sente o cheiro de cortisol elevado em seu suor, e a o psiquiatra do Kansas que apresenta informações sobre TDAH com acompanhamento de barracas no mar.
O contato foi feito. Na plateia, o influenciador Timm Chiusano, pai do Brooklyn, estava se perguntando como construir sua própria parceria com a Escola de Saúde Pública de Harvard. “Vou baixar 1.000 por cento desse kit de ferramentas assim que puder”, revelou.
Mas quem estava impulsionando quem? A conselheira Jaime Mahler, que estava promovendo um novo livro sobre relacionamentos tóxicos, parecia um pouco triste quando considerou seus parceiros acadêmicos.
— Harvard tem uma base de conhecimento abundante, se eles conseguirem encontrar uma maneira de se conectar com as pessoas que fazem a digestão — comentou Jaime.
Ela havia aprendido muito sobre cientistas. Em alguns casos, disse Jaime, eles passam 10 anos em um projeto de pesquisa, publicam um artigo, “e talvez ele seja divulgado, mas às vezes nunca chega ao público em geral de uma forma que realmente mude a conversa”:
— Meu coração meio que se parte por essas pessoas — lamentou.
Fonte: O GLOBO
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