Ana Carla Abrão, especialista no setor público, defende uma reforma administrativa que revise carreiras, faça avaliação de desempenho e acabe com os ‘penduricalhos’

Na sétima e última reportagem da série sobre os desafios para tornar a máquina pública mais eficiente, Ana Carla Abrão, especialista em gestão pública e ex-secretária da Fazenda de Goiás, afirma que é urgente acabar com os privilégios, as férias de 60 dias e os supersalários. Além disso, diz que países como Austrália, Canadá, Reino Unido, Portugal e Chile são exemplos para o Brasil de como é possível fazer reformas mais profundas e tornar o serviço público mais eficiente.

Para ela, o caminho é rever carreiras, ter avaliação de desempenho, além do combate aos supersalários.

Quais os pontos que a reforma administrativa deve tratar?

O primeiro ponto é a racionalização do número de carreiras e isso vale para os níveis federal, estadual e municipal. Precisamos reduzir o número de carreiras e a complexidade da máquina pública brasileira, em função dessa fragmentação de carreiras. Hoje, há carreiras com excesso de trabalhadores e outra muito correlata com escassez de força de trabalho. Você tem que abrir o concurso porque não existe essa mobilidade.

Outra distorção é que uma carreira está sempre competindo com outra no atendimento às suas demandas. Uma carreira consegue um aumento e isso tem um efeito dominó. Acaba gerando um inchaço, embora a sensação das pessoas seja de que não há gente suficiente para atender, porque essa alocação de pessoas não é a melhor possível, não é a mais eficiente.

É a primeira coisa a se fazer, e isso não é simples. Tem que negociar com muitas categorias, com servidores que acham a sua carreira a mais importante.

Qual o segundo ponto?

O segundo aspecto é a avaliação de desempenho. Tem que regulamentar o artigo 41 da Constituição (que trata da estabilidade e da avaliação de desempenho). Ele prevê a demissão por baixo do desempenho, só que esse artigo não foi regulamentado para definir o que é baixo desempenho, como é que esse desempenho é medido e as formas de provar que, de fato, o servidor tem baixo desempenho para permitir a sua demissão de forma justa, sem perseguições nem apadrinhamento.

É importante para diferenciar os servidores pelo mérito. Isso tem efeitos negativos na motivação do servidor, porque aquele que trabalha muito e aquele que não trabalha acabam ganhando a mesma coisa. Vários países, não por acaso aqueles onde o serviço público é mais bem avaliado, têm modelos de avaliação de desempenho muito claros.

Isso permite que gestores públicos possam fazer o desligamento das pessoas que não que têm o desempenho adequado. Hoje, eu não posso desligá-las mesmo que elas reiteradamente façam mal o serviço.

E como resolver a questão dos supersalários?

Temos que tratar dos penduricalhos, das distorções que existem aos montes, menos no governo federal, mas ainda no governo federal. Mas muito em estados e municípios e fortemente no Judiciário e também no Legislativo, que são férias de 60 dias, aposentadoria compulsória remunerada como penalidade, licença para concorrer a cargo público de forma remunerada, progressões automáticas, tudo isso precisa ser eliminado.

São privilégios que teríamos vergonha de defender. O próprio servidor teria vergonha de defender. Isso é um bom parâmetro para dizer que não pode acontecer, que não é aceitável num país tão desigual.

Como envolver o Judiciário e o Legislativo na reforma?

Esse talvez seja o maior desafio, porque seriam os únicos dois aspectos que ensejariam mudança constitucional. O primeiro é o Judiciário (que tem autonomia garantida na Constituição) e o segundo são os entes federados, estados e municípios. Nos entes, quando o estado ou município pedir um aval para empréstimo, o Tesouro poderia exigir como condicionante a reforma administrativa.

No caso do Judiciário, acredito que até uma mudança constitucional seria questionada. O maior desafio, hoje, é fazer uma reforma no Judiciário, onde se concentram várias distorções. Depende do próprio Judiciário se convencer da necessidade da mudança.

Logo depois da aprovação da Reforma da Previdência (2019), o então deputado Rodrigo Maia tinha a intenção de fazer uma reforma no Legislativo e havia uma articulação na época para o próprio Judiciário começar a fazer essa discussão internamente.

Essa mudança no Judiciário só se faz por meio do convencimento dos outros poderes. Com esse processo iniciado, as distorções vão ficando mais claras. Mas é uma questão que só se resolve por meio do diálogo, da pressão social e de uma articulação política.

O governo está no caminho certo?

É o caminho que temos defendido do ponto de vista técnico e acadêmico: atuar com um conjunto de ações que não necessitam de uma grande reforma constitucional. Não adianta querer virar a mesa. É um assunto que exige maturidade e, para isso, tem que dialogar, discutir em um processo de convencimento. Pelo que tenho acompanhado, o governo tem ido nessa direção.

Não vamos ter uma reforma mais profunda então?

Depende do que você chama de reforma profunda. Eu acho que se conseguirmos revisar e reestruturar as carreiras já é uma reforma relevante. Porque tem gente que acha que reforma profunda é acabar com a estabilidade. Não tenho a menor dúvida de que o governo não vai fazer isso.

Agora, reestruturar carreiras e começar a mudar o modelo de avaliação de desempenho, para mim, é uma reforma profunda. Pelas declarações que temos ouvido da ministra (Esther Dweck, da Gestão e Inovação) e do próprio ministro (da Fazenda, Fernando) Haddad mais recentemente, esses temas estão na pauta.

É uma transformação profunda que a gente precisa começar com essas ações (o governo quer reduzir o número de carreiras de 150 para 20 ou 30). Do ponto de vista legislativo, nem são tão complicadas, mas precisam de diálogo, de construção e de implementação.

Acha possível reduzir o gasto com funcionalismo?

Com a reforma, vamos ganhando eficiência e poderemos precisar de menos servidores do que temos hoje. Poderemos criar condições de capacitar esse servidor, implementar processos mais digitais, mas não é uma pauta fiscal. Quando se começa a discussão como uma pauta fiscal, cria-se uma enorme resistência por parte do próprio corpo dos servidores, porque fica parecendo que o ajuste fiscal vai ser feito em cima dos salários.

E não se trata disso. Precisamos investir na máquina pública para ela ser mais digital, dar mais instrumentos de trabalho para o servidor e garantir que ele está capacitado para prestar o melhor serviço. Isso hoje não existe porque o volume de recursos que é consumido para despesa de pessoal não deixa margem.

A nossa máquina pública tem baixa produtividade?

Não existe estudos sobre a produtividade do setor público. Mas, quando olhamos a nossa produtividade total, que está estagnada nos últimos 30 anos, é muito difícil não imaginar que isso tem uma participação relevante do setor público puxando essa produtividade para baixo.

Outra evidência é a constante elevação do número de servidores na máquina pública. Se a gente quiser aumentar a produtividade da economia brasileira, primeiro precisamos ter no setor público uma alavanca de aumento de produtividade.

Como a experiência internacional pode ajudar?

Primeiro, mostrando que as reformas são possíveis. A maior dificuldade quando se fala de reforma administrativa é que as pessoas não querem nem começar a discutir, dizendo que não vai dar certo. A experiência internacional mostra que outros países, que têm dificuldades políticas como o Brasil, conseguiram.

A segunda é que os resultados são reais. Reino Unido, Canadá, Austrália, Portugal e Chile são países em que, após a reforma, a qualidade do serviço público melhorou e a quantidade de servidores diminuiu. Temos exemplo aqui também, como Espírito Santo e Rio Grande do Sul. Portanto, é possível.


Fonte: O GLOBO