Não deveria ser desperdiçada a oportunidade que se apresenta, de discutir para valer a escalada da violência no futebol brasileiro

Enquanto não estiverem disponíveis as imagens de todos os ângulos, enquanto não for concluída a investigação da polícia, será estéril a discussão sobre quem começou ou quem está mais errado no episódio de violência de um dirigente do Flamengo contra um torcedor que foi importuná-lo num shopping do Rio de Janeiro. Por enquanto, há uma guerra de versões — todas indefensáveis.

As divergências entre as versões são importantes, evidentemente. Marcos Braz argumenta que foi ameaçado de morte na presença de sua filha adolescente, que também teria sido insultada — o que não é trivial — e só então reagiu.

Em uma longa entrevista coletiva transmitida ao vivo ontem, o cartola contou detalhadamente tudo o que aconteceu antes e depois da agressão ao torcedor Leandro Campos na tarde de terça-feira. Só não conseguiu lembrar do que houve durante a briga. 

Não soube ou não quis responder, por exemplo, se realmente mordeu seu oponente na virilha. Um laudo do Instituto Médico Legal atesta que houve mordida, mas não especifica o autor.

A advogada de Leandro Campos afirmou que seu cliente “não fez nada que saísse da normalidade”. Como se perseguir e intimidar dirigentes de futebol por aí fosse normal. Por mais que o futebol tenha tornado tal comportamento aceitável, não é.

Não deve ser ignorado o fato de que Campos se apresentou como membro de uma torcida organizada que, no dia anterior à briga, havia distribuído um comunicado com ameaças explícitas contra jogadores e dirigentes do Flamengo. “Mandem mensagem no privado, que nós vamos na direção deles, a cobrança vai ser severa. Acabou a paz!!”, dizia o texto.

Seja quais forem os desdobramentos, o que não vai mudar é o caráter degradante da situação. Especialmente para o dirigente que protagonizou o espetáculo grotesco, para o clube de futebol que decide mantê-lo à frente do departamento de futebol mesmo após tamanho escândalo, e para os 40 mil cidadãos do Rio que o elegeram vereador há três anos — trabalho pelo qual demonstrou enorme desprezo na entrevista coletiva de ontem.

Por ocupar há anos essas duas funções, Marcos Braz — autor da expressão “gelo no sangue” para tratar de negociações no mercado de transferências — deveria saber lidar melhor com a popularidade negativa. Assim como já ficou claro, pelo menos desde 2020 — quando se elegeu graças à exposição obtida com o cargo no Flamengo —, que sabe lidar com o popularidade positiva.

Alguém na posição dele jamais deveria descer ao nível de delinquência de quem na véspera se orgulhava de anunciar que “acabou a paz” e partir para a violência física. Shoppings costumam ser ambientes seguros, repletos de seguranças e câmeras. Provavelmente havia maneiras melhores de resolver a situação.

É inevitável que o caso entre para o folclore, sobretudo por ser a terceira vez em poucos meses em que alguém do Flamengo responde a uma situação adversa com pancadaria. Mas não deveria ser desperdiçada a oportunidade que se apresenta, de discutir para valer a escalada da violência no futebol brasileiro, e tornar mais saudáveis e transparentes as relações entre clubes e torcidas organizadas.


Fonte: O GLOBO