Com uma infância marcada pela violência dos país, Milei cresceu como um jovem solitário até formar-se economista e ingressar em um talk show na TV argentina, tornando-se um fenômeno de popularidade

O último domingo foi de comemoração e alívio para Javier Milei. Candidato mais votado durante as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), que definem os candidatos que disputarão o primeiro turno da eleição presidencial de 22 de outubro, Milei teve a sinalização mais firme até o momento de que sua tentativa de chegar à Casa Rosada pode decolar — após meses de altos e baixos.

A crise econômica profunda — a mais recente em décadas de crises econômicas, financeiras, políticas e sociais — parece ter dado o impulso à candidatura do candidato de extrema direita, admirador de Jair Bolsonaro e Donald Trump. 

Até o resultado de domingo, no entanto, o cenário era mais de incerteza do que de otimismo, uma vez que Milei variou, nos últimos meses, entre uma campanha capaz de pautar o debate público argentino e derrotas eleitorais locais e um esquema de venda de candidaturas em seu partido, Liberdade Avança (LLA, na sigla em espanhol).

Apesar das oscilações, as propostas lançadas por Milei dominaram a agenda pública argentina a esta altura do ciclo eleitoral. O economista ultraliberal já afirmou, entre outras coisas, que queimar o Banco Central "vai acabar com a inflação", que a venda de órgãos pode ser "mais um mercado" e que os políticos "devem levar um chute na bunda".

Histriônico, desalinhado, mas ao mesmo tempo muito cuidadoso com a imagem, o candidato de extrema direita impôs sua fúria antiestablishment no debate político desde a primeira vez que pisou em uma televisão, em 2016. Sua raiva cativou a frustração pública de uma sociedade cansada da política.

Violência em casa e juventude solitária

Filho de um motorista de ônibus que acabou sendo empresário do transporte e de uma dona de casa, Javier Milei, de 52 anos, nasceu e cresceu em um lar violento em Buenos Aires. “Para mim eles estão mortos”, costumava repetir sobre seus pais em 2018, no auge de sua carreira como apresentador de talk show de televisão. Milei então não falava com Norberto e Alicia há uma década, que o criaram entre espancamentos e abusos verbais.

Inibido em casa, sustentado apenas pela avó materna e Karina, sua irmã caçula, ficou famoso por ser revoltado na escola. Conforme revelou seu biógrafo não autorizado, o jornalista Juan Luis González, na escola católica onde cursou o ensino médio o chamavam de "El Loco" por causa dos desabafos que décadas depois o levaram a se tornar o economista favorito da televisão e deputado nacional.

Milei estudou na escola Cardenal Copello em Villa Devoto, um subúrbio de classe média alta de Buenos Aires, onde jogou futebol como goleiro nas divisões inferiores do time Chacarita Juniors, cantou em uma banda que fazia cover dos Rolling Stones e de onde ele não se lembra de ter tido namoradas ou amigos.

Ele ainda pode falhar em sua candidatura à Presidência em 22 de outubro, mas a campanha já vingou a solidão que reinou em sua juventude com o clamor popular. Cerca de 10 mil pessoas o aplaudiram na segunda-feira, 7 de agosto, no encerramento de sua campanha. O candidato, que fez carreira política ameaçando "chutar a bunda" de políticos e discursando contra "a casta", revisou o caminho percorrido desde que liderou a chegada da extrema direita ao Congresso argentino em novembro de 2021.

Propostas e controvérsias

No ano e meio que tem assento entre os deputados, não promoveu nenhum projeto e tem sorteado cada um de seus salários entre seus seguidores. Seus apoiadores fieis aplaudem os dois gestos: Milei não esquenta a bancada, revela a ineficiência da Câmara. Ele não é um populista que distribui seus ganhos, expõe os políticos e seus salários são mais altos a cada mês. 

Enquanto o estádio semicheio entoava a música que fez sua bandeira, "Que se vayan todos", Milei agradeceu a seis nomes: "El Jefe", como chama sua irmã Karina, seu pilar emocional e coordenador de campanha; e Conan, Murray, Milton, Robert e Lucas, os cinco Mastiffs ingleses que ele chama de “filhos de quatro patas”.

Ao lado da irmã, Karina Milei, o candidato da extrema-direira argentina discursa após vencer as primárias — Foto: ALEJANDRO PAGNI/AFP

Economista com graduação e mestrado em universidades privadas de Buenos Aires, Milei impôs o debate sobre a dolarização diante da inflação vertiginosa, sobre o ajuste dos gastos públicos, que na Argentina mantém um Estado forte que nenhum político ousa tocar, e a mão forte contra o crime. Mas nada pegou tanto quanto sua vida privada.

É, em parte, sua responsabilidade. Milei tende a preferir se atolar em explicações do que sair do aperto com um sim ou não. O biógrafo González garante, por exemplo, que Milei estuda telepatia e tem um meio para se comunicar com o mais velho de seus mastins, falecido em 2017, a quem pede conselhos.

“O que eu faço dentro de casa é problema meu”, respondeu em entrevista ao El País. "E se ele é, como dizem, meu conselheiro político, a verdade é que conquistou toda a gente."

Milei sorteia seu salário no Congresso mensalmente — Foto: Erica Canepa/Bloomberg

É sua resposta clássica. Em junho do ano passado, ele levantou a venda de órgãos como "mais um mercado" durante um debate no rádio. “Quem decidiu vender o órgão para você, como ele afetou a vida, a propriedade ou a liberdade de outras pessoas? Quem é você para determinar o que ele tem a ver com a vida dele?", questionou.

E a espiral saiu do controle. Dias depois, um jornalista perguntou se ele aderia a outra teoria que levantava "a venda de crianças". “Depende”, respondeu Milei, e se emaranhou. "A resposta não seria não?", perguntou-lhe o jornalista. "Se eu tivesse um filho, não o venderia", disse ele. "A resposta depende de quais termos você está pensando, talvez daqui a 200 anos isso possa ser debatido."

No final de maio, ele beirava o absurdo ao rebater acusações em tom de escárnio. "Javier Milei é um palestrante desgrenhado que grita no palco e dorme com oito cachorros e sua irmã", descreveu Victoria Donda, ex-deputada de esquerda e diretora do Instituto Nacional contra a Discriminação durante o atual governo peronista. “Não tenho oito cachorros, tenho cinco”, limitou-se a responder no set de uma emissora de televisão simpática a ele, que lhe pediu uma resposta.

São polêmicas inusitados para quem deveria estar acostumado com os canais de televisão, aos quais chegou em 26 de julho de 2016, durante um dos talk shows da meia-noite.

"Ele poderia ser ministro da Cultura, mas será ministro da Economia", disse ao país o apresentador do Animales Sueltos, Alejandro Fantino, na oportunidade. Milei respondeu ironicamente: "Dê-me o Banco Central".

E ocupou a hora inteira do programa. Foi o momento inaugural do resto de sua vida.

Trabalho, mudanças e futuro

Milei passou anos trabalhando duro. Foi assessor do general Antonio Bussi, militar que foi governador da província de Tucumán durante a ditadura e, posteriormente, deputado nacional; Economista-chefe da Fundação Acordar, o think tank do ex-governador peronista de Buenos Aires, Daniel Scioli; e trabalhou na empresa que administra a maioria dos aeroportos argentinos. Seu então patrão, Eduardo Eurnekian, um dos homens mais ricos do país, também é dono da emissora de televisão onde ganhou fama.

Suas contradições parecem não incomodar um terço do país que no domingo comemorou sua vitória. Ele reclama da “casta”, mas já a conhece há muito tempo; Libertário, se opõe ao aborto e à educação sexual nas escolas; Conquistou o carinho de grande parte da comunidade migrante, mas os ameaça com tratamento diferenciado ao proibir a entrada de estrangeiros com antecedentes criminais e deportar aqueles que cometem crimes no país.

“Coisas muito fortes aconteceram comigo que vão além de qualquer explicação científica”, diz Milei, que cresceu católica e conhece bem a Bíblia. Hoje um de seus grandes conselheiros é rabino e diz estar "estudando" para se converter ao judaísmo.

Há um ano, muitos pensavam que sua campanha não chegaria a este inverno. Em 10 de junho de 2022, contra um frio intenso em Buenos Aires, Javier Milei convocou seu primeiro grande comício na periferia da capital argentina. Seis meses se passaram desde sua chegada ao Congresso, sua popularidade estava em ascensão e ele já começava a anunciar que queria ser presidente. O ato foi um fracasso. Eram pouco mais de mil pessoas.

Foi também o início de sua guerra política: acompanhado apenas por sua irmã e ex-assessora de imprensa do governo neoliberal dos anos 1990, alguns em suas bases começaram a denunciar que o partido que construíram na lama, La Libertad Avanza, era cooptado em favor da reciclagem de políticos ao longo da vida que chegaram a menos.

A Justiça agora investiga se a comitiva de Milei pediu milhares de dólares em dinheiro em troca de cargos nas listas para as eleições gerais de outubro, mas seu partido está mais forte do que nunca. Ele também falou com seus pais novamente. Ele completa 53 anos em 22 de outubro, dia das eleições presidenciais — e pode receber o presente de uma vida.


Fonte: O GLOBO