Prazo para que nações chegassem a acordo para regulamentar a prática expira no domingo, obrigando órgão multilateral a analisar projetos para a extração comercial

Há um fascínio pelo pouco que se conhece das águas profundas e dos ecossistemas que lá se desenvolveram apesar das condições extremas. Em breve, contudo, poderão ter nova companhia: companhias que buscam explorar comercialmente as reservas minerais do fundo do mar e vendem-se como parte da solução para a transição verde do planeta. Mas as consequências ambientais disso podem ser catastróficas.

A partir de domingo, a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês), braço da Organização das Nações Unidas (ONU) sediado na Jamaica, poderá começar a receber as primeira propostas para projetos de mineração comercial em águas internacionais profundas. Algo até agora vetado por convenção internacional e cujos impactos ambientais não são de todo conhecidos.

Os próximos passos geram discórdia entre os 167 países-membros e, em particular, entre os 36 integrantes (entre eles o Brasil) do conselho rotatório que efetivamente toma as decisões. Quase 20 nações do seleto grupo defendem que a exploração comercial não vá em frente a menos até que haja maiores esclarecimentos sobre seus riscos, mas as regras procedurais podem ser um obstáculo.

A contagem regressiva até domingo foi ativada há dois anos por Nauru, o terceiro menor Estado do planeta — com 21 km², fica apenas atrás de Vaticano e Mônaco. A pequena ilha do Pacífico recorreu a uma controversa cláusula da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar que dava ao conselho da ISA 24 meses para finalizar o regulamento para a mineração comercial.

Cabe ao braço da ONU garantir que fundo do oceano seja usado "para o uso exclusivo da Humanidade como um todo", garantindo que as nações pobres tenham "consideração preferencial no evento de benefícios financeiros". Também é responsável por assegurar que a mineração não cause "danos sérios no ambiente marinho", mas um consenso sobre como regulamentar a atividade está distante.

Com ou sem diretrizes, contudo, o fim dos dois anos significa que a ISA será obrigada a aceitar propostas para a mineração comercial das reservas. Um dos temas-chave da reunião da organização que começa na segunda será como abordar possíveis solicitações, e Nauru já indicou que pretende apresentar um plano ainda neste ano.

De olho em vantagens econômicas, o país insular de 11 mil habitantes patrocina a empresa canadense The Metals Company (TMC), a quem oferece vantagens fiscais. A firma, por sua vez, recorreu a uma nação em desenvolvimento mais facilmente atraída por promessas econômicas que o Estado norte-americano.

Como um todo, as reservas no fundo do mar têm valor calculado que varia de US$ 8 trilhões a US$ 16 trilhões. E as substâncias no novo Eldorado são encontradas em três formas diferentes: em nódulos polimetálicos, sulfetos polimetálicos e crostas de cobalto.

Nódulos polimetálicos: em planícies abissais, a profundidades aproximadas de 3 mil a 6,5 mil metros, são os depósitos mais comuns, reunindo principalmente substâncias como manganês, cobalto, cobre e níquel em nódulos do tamanho de batatas, além de vestígios de elementos de terras raras;
Sulfetos polimetálicos: de mil a 4 mil metros de profundidade, formam-se perto dos limites das placas tectônicas, e seus depósitos têm principalmente cobre, chumbo, zinco, prata e ouro;
Crostas de cobalto: são encontradas de mil a 2,5 mil metros de profundidade, em média, em cadeias montanhosas submarinas, formando-se ao longo de milhões de anos. Entre as substâncias principais estão cobalto, níquel, manganês e elementos de terras raras.

As reservas estão concentradas em uma região do Pacífico conhecida como Zona Clarion-Clipperton, área de 4,5 milhões de km² — se fosse um país, seria o sétimo maior do mundo, antes da Índia — entre o Havaí e o México. Cálculos conservadores estimam que só ali há cerca de 21,2 bilhões de toneladas de nódulos polimetálicos. Só em um teste no ano passado, a TMC extraiu 4,5 mil toneladas de tais compostos.

Acredita-se que na área haja 6 bilhões de toneladas de manganês, 226 milhões de toneladas de cobre, 94 mil toneladas de cobalto e 270 milhões de toneladas de níquel. A demanda por essas substâncias vem crescendo conforme o mundo troca os veículos tradicionais pelos elétricos.

Demanda crescente?

Segundo um estudo recente publicado pela revista Nature Communications, a transição pode aumentar a procura por níquel, cobalto e manganês, respectivamente, 54, 28 e 27 vezes. Várias outras pesquisas, entretanto, apontam que a reserva geológica terrestre dá conta de uma demanda. E há sinais também de que, em breve, a procura pode cair.

— A indústria automotiva está se distanciando rapidamente do cobalto e do níquel por várias razões — disse ao GLOBO Matthew Gianni, co-fundador da Coalizão para a Conservação das Águas Profundas (DSCC, na sigla em inglês). — Primeiro, eles são muito caros. Segundo, ao menos neste momento foram encontrados substitutos muito baratos, o ferro e o fósforo.

A maior produtora de carros elétricos do mundo, a chinesa Build Your Dream (BYD), deixou de lado substâncias como cobalto, níquel e alumínio em suas baterias. Agora recorre ao lítio, com presença até onde se sabe irrelevante no fundo do mar, ferro e fosfatos — substâncias muito mais abundantes e fáceis de encontrar na superfície.

A vice-líder de mercado, a Tesla, introduziu baterias similares em 2019. Em março, empresas como a Google, a BMW, a Volvo e a Samsung foram as primeira a assinarem uma iniciativa da WWF para uma moratória até que os riscos da atividade sejam compreendidos por completo e todas as alternativas sejam exauridas.

Outro argumento dos opositores da extração é que ela não reduzirá a mineração terrestre, com frequência associada ao trabalho forçado e ao deslocamento de comunidades inteiras. Pelo contrário, aumentará a atividade em terra firme, principalmente em países em desenvolvimento e áreas de conflito.

— A mineração em águas profundas não vai substituir ou reduzir a mineração terrestre — afirmou Pradeep Singh, pesquisador do Instituto de Pesquisa para a Sustentabilidade no Centro Helmholtz, em Potsdam. — Os mineradores terrestres não vão simplesmente se aposentar e relaxar (...). Vão agir para permanecerem competitivos.

Até hoje, ainda assim, 31 contratos de exploração — a etapa inicial para avaliar e explorar a viabilidade da extração em massa, antes da apresentação de uma proposta de mineração — foram emitidos pela ISA. China, França, Alemanha, Índia, Japão, Rússia e Coreia do Sul têm ao menos 18 dessas licenças primárias por meio de estatais ou órgãos oficiais, segundo a DSCC.

O Brasil já teve um contrato para a exploração na Elevação Rio Grande, a cerca de 1,2 mil km do litoral sul. Foi suspenso em 2021, contudo, após o país conseguir o reconhecimento de que a área é uma extensão de sua plataforma continental e, portanto, está sob jurisdição brasileira. A ISA só regula águas internacionais.

Dependendo de onde os minérios estejam, há técnicas diferentes de levá-los à superfície, de perfurações a robôs que retiram nódulos do fundo do mar. Os holofotes, contudo, podem perturbar a vida em áreas onde não há incidência de luz natural, atrapalhando animais que usam da biofluorescência para navegar, encontrar predadores e se reproduzir, por exemplo. As vibrações podem ter consequências similares, assim como a locomoção dos robôs usados nos procedimentos.

Também teme-se qual pode ser o impacto dos dejetos retornados ao mar e das nuvens de sedimento geradas pelo processo. Aos medos soma-se o fato de a região ainda ser amplamente desconhecida: um estudo do Museu de História Natural do Reino Unido avaliou os registros de mais de 100 mil animais encontrados em Clarion-Clipperton e constatou que cerca de 90% das amostras eram desconhecidas da Humanidade.

Disputa política

Tais fatores fazem com que quase 20 dos 36 países do conselho decisório tenham afirmado que não autorizarão pedidos para a mineração comercial ao menos até que haja mais garantias, sinalizou o DSSC em uma entrevista coletiva na quarta. No último ano, ganhou força um movimento para que os avais não sejam concedidos até que o código da mineração seja fechado.

Na reunião de março do ISA, o Brasil afirmou que o conhecimento atual é insuficiente para permitir a aprovação de projetos de mineração de águas profundas em territórios internacionais e demonstrou preocupações com os riscos ambientais. 

À reportagem, o Itamaraty reforçou o posicionamento contrário à exploração comercial "enquanto não for adotado arcabouço jurídico robusto que garanta a proteção do meio ambiente marinho" e disse que há "evidente preocupação acerca dos potenciais efeitos danosos da mineração em águas profundas sobre a biodiversidade marinha".

Indagado se o Brasil apoiaria uma moratória, o Itamaraty afirmou que "tem realizado consultas junto a outros órgãos e ministérios competentes do governo brasileiro com vistas a consolidar posição nacional em relação à proposta de pausa preventiva".

Há quatro meses, o órgão da ONU concordou em março em adotar uma "abordagem cautelosa" sobre a mineração em águas profundas, mas grande parte dos países continua no limbo. Outros são ambíguos: a França, por exemplo, tem contratos para avaliar a viabilidade da extração comercial, mas defende um veto à prática. Espanha e Alemanha pediram que não haja extração até que mais detalhes sejam conhecidos, mas também têm contratos.

Os Estados Unidos não fazem parte da ISA, e a China, apesar de ter mais licenças do que qualquer nação, indicou na reunião de março não ter interesse de dar um sinal verde neste momento. Já a Noruega vem se opondo a propostas que facilitem vetar propostas de exploração comercial. A oposição mais vocal, contudo, vem mesmo é de Nauru, integrante do conselho da ISA.

As regras do organismo e possíveis conflitos de interesse, apontam ativistas, podem facilitar a aprovação do projeto da nação insular. Antes de chegar ao conselho, qualquer projeto de mineração deve obter o apoio da maioria de uma comissão legal e técnica da ISA. Ela é composta de especialistas como advogados de Direito Marítimo, geólogos e cientistas, alguns deles com vínculos com o lobby da mineração.

Se houver parecer técnico favorável ao projeto de mineração, explica Gianni, o plano estará aprovado a menos que haja uma maioria contrária de dois terços no conselho decisório e dentro de suas comissões. Se os especialistas recomendarem o sinal verde, disse ele, "é quase impossível para o conselho dizer não".

— E são só os 36 membros do conselho que decidem isso, não importa a visão dos outros 130 integrantes do ISA — disse Gianni, afirmando que propostas para mudar tais regras também devem ser debatidas nas próximas semanas. — É um processo profundamente antidemocrático.


Fonte: O GLOBO