Medida está em vigor desde 2016 em confrontos regionais; autoridades do estado vão analisar novas restrições

O futebol paulista iniciou 2023 com o sonho de ver a torcida única em clássicos chegar ao fim. Seis meses depois, a realidade é totalmente oposta. Com a morte da palmeirense Gabriela Anelli, cortada no pescoço por estilhaços de vidro durante confusão em frente ao Allianz Parque, no último sábado, o movimento pela ampliação da medida para outros jogos ganhou força. E voltará a mesa de discussão das autoridades do estado.

O primeiro a levantar o debate foi o delegado César Saad, da Delegacia de Repressão aos Delitos de Intolerância Esportiva (DRADE). Na segunda-feira, dia da morte de Gabriela, ele defendeu que a regra fosse estendida para jogos de rivalidades nacionais, citando não só Palmeiras x Flamengo como exemplo, mas também São Paulo x Vasco. 

Ele não ficou sozinho. Procurado pelo GLOBO, o Ministério Público do estado, principal órgão defensor da medida, informou que “a questão da torcida única para outros jogos, com sua ampliação, está em análise”.

A torcida única em clássicos de São Paulo vigora desde 2016. Foi instaurada pelo próprio MP-SP e pela Secretaria de Segurança Pública do estado. Também procurada pelo GLOBO, a pasta afirmou que “as restrições de duas torcidas são determinadas pela Federação Paulista de Futebol (FPF), seguindo a recomendação do Ministério Público” e que as polícias Militar e Civil, “até o momento, não receberam documento oficial referente à expansão de torcida única”. A reportagem apurou, contudo, que a extensão da medida também é estudada internamente pelo órgão.

No grupo formado por membros das policias, do poder judiciário e por promotores do MP-SP, o caso Gabriela reacendeu a ideia de que é preciso se dedicar aos estudos da ampliação da regra para jogos de âmbito nacional. Isso alguns meses depois de analisar o pedido formalizado por São Paulo e Palmeiras pelo fim da torcida única nos clássicos.

Esta guinada no sentido contrário se deve ao fato de o comitê não ver com bons olhos o fim da torcida única. Tanto que bastou o primeiro registro de briga — uma emboscada de palmeirenses a um ônibus com corintianos, no dia 10 de fevereiro, após jogos das equipes contra rivais diferentes — para a ideia ser sepultada.

Esta, inclusive, não é a primeira vez que autoridades paulistas defendem a ampliação da torcida única. Em 2019, a CBF acatou pedido do MP-SP e da Polícia Militar para que Palmeiras x Flamengo, pela 36ª rodada do Brasileiro, só tivesse torcedores do clube paulista. 

A justificativa foi o risco de confrontos dado o acirramento da rivalidade entre as torcidas. Em 2022, passado o período de fechamento dos estádios pela pandemia, o rubro-negro fez valer o direito da reciprocidade adquirido na Justiça e fez o mesmo no Maracanã.

Especialista e organizadas discordam de medida

— Se não houvesse torcida no Brasil, ou não houvesse futebol, os conflitos não iriam acontecer — ironiza Flávio de Campos, professor da pós-graduação em História Sociocultural do Futebol na Universidade de São Paulo (USP), para quem a torcida única é uma resposta imediatista e cuja eficácia tem sido mínima.

— A construção de políticas públicas e de segurança para o esporte implica em uma perspectiva democrática. As autoridades precisam se reunir com todos os agentes do campo esportivo. Isso inclui clubes, federações, CBF, atletas, representantes das organizadas, imprensa e patrocinadores. Que se faça uma grande discussão e se pense em soluções. Mas incluindo todo mundo, não excluindo.

Esta é justamente a queixa que vem do lado dos torcedores, principais afetados pela decisão. Segundo Luiz Cláudio do Carmo, presidente da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg), o canal de diálogo com as autoridades, que já existe para alinhar deslocamento em dias de jogo, simplesmente não é usado para a definição de políticas públicas. Isso não só em São Paulo, embora o estado seja classificado por ele como um dos mais fechados a este tipo de troca.

— É sempre de cima para baixo. Uma postura de só criminalizar as torcidas. E que vem sempre logo depois de fatos ocorridos exatamente por falhas de segurança, como este último que levou à morte da Gabriela. 

Nisso, mostram a fragilidade do estado em proteger o cidadão. Deveriam trazer as torcidas para um debate sobre a criação de um protocolo de prevenção à violência. Como também à homofobia, racismo e assédio nos estádios. Mas nada disso acontece —afirma Luiz Cláudio. — As torcidas são nada mais que um respiro, uma válvula de escape da sociedade. Tem gente da classe E à A. E elas estão dispostas a cooperar e trazer ideias.


Fonte: O GLOBO