Premiada, gaúcha de 14 anos com o diagnóstico quer estudar física em Harvard

Um ano após ser diagnosticada com transtorno do espectro autista, a estudante Mariana Warmling, de 14 anos, vivenciou o que considera ser uma de suas maiores conquistas: receber uma medalha de ouro pelo excelente desempenho na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP).

Com o sonho de estudar física em Harvard, ela, ao lado dos colegas Nykolas Carvalho, de 14 anos, e Tiago Yukio Palomino, de 18, também premiados na 16ª e 17ª edição da prova, aproveitou o evento para levantar a bandeira da inclusão de pessoas com deficiência na educação.

Entre os mais de mil medalhistas que participaram da cerimônia, realizada na última semana em Florianópolis (SC), os três foram os únicos estudantes com autismo premiados. O fato de serem minoria, no entanto, não os abalou. Ao contrário. Mariana, por exemplo, usa sua medalha dourada para engajar os professores de sua escola no desenvolvimento de métodos de aprendizagem que ajudem ela e outros estudantes neuroatípicos a absorverem os conteúdos de forma mais didática.

— Eu sempre fui boa em matemática porque acho mais fácil de entender. Por conta do autismo, eu tenho dificuldade em português. Tirinhas de humor e expressões como “colocar o pé na jaca” eu não entendo. E nessas horas as minhas professoras sentam do meu lado e me explicam de um jeito mais literal. Elas também me ajudam a me concentrar em momentos de barulho, que me incomodam muito — conta a gaúcha, de Jaraguá do Sul, que está no 9º ano do ensino fundamental.

Raciocínio lógico

O transtorno do espectro autista está relacionado a alterações físicas e funcionais do cérebro, que comprometem o desenvolvimento motor, da linguagem e comportamental desde o nascimento. Alguns dos principais sinais do autismo são apego excessivo a rotinas, ações repetitivas e dificuldade de interpretação. Por isso, apesar de ainda não haver estudos científicos que comprovem, a matemática tende a ser um hiperfoco de crianças com o transtorno por ser baseada na lógica.

— Existem níveis de autismo, que vão do leve ao severo, e em todos eles há um comprometimento da fala, dificuldade de lidar com pessoas, entender expressões, ler e escrever. Como a matemática é mais pura, se torna mais fácil. 

Contudo, em todos os conteúdos, seja de humanas ou exatas, é preciso fazer uma adaptação com pinturas, colagens, para que, a partir da necessidade do aluno, se crie um interesse pela matéria — explica a psicopedagoga e doutoranda da Universidade Federal de Uberlândia, Tatiane Daby.

O medalhista Tiago, de São Paulo, foi diagnosticado com autismo aos 6 anos. Com inteligência nata para números, nas aulas de reforço contratadas pela mãe, a funcionária pública Raquel Nakashima, de 41 anos, era o jovem quem ensinava o professor novas formas de resolução das equações. Hoje, com o ouro na OBMEP, ele tenta vaga no ensino superior para cursar física ou programação.

— Já sei programar Python, HTML, aprendi inglês sozinho e sei o básico de japonês. Logo vou para a faculdade — conta Tiago.

Prova inclusiva

Além de incentivar a participação de alunos com autismo, a OBMEP oferece provas em braile para deficientes visuais, auxílio de tradutor de libras para surdos e suporte para cadeirantes. Na edição do ano passado, 674 estudantes com algum tipo de deficiência foram contemplados em todo o Brasil na segunda fase da competição, aplicada diretamente pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada, realizador da olimpíada.

Diretamente da Bahia e com amigos que se incluem nessa “minoria”, o medalhista de ouro e prata Nykolas Carvalho, hoje no 9º ano, afirma ser um estimulador dos futuro crânios da matemática.

— Eu hoje não tenho problemas em dizer que sou autista. Foi uma sensação incrível ter ganhado a medalha e com ela eu quero mostrar para o mundo que eu tenho potencial como todo mundo — afirma.

Durante a cerimônia de premiação, o ministro da Educação, Camilo Santana, parabenizou os ganhadores e afirmou que o MEC vai investir na inclusão de pessoas com deficiência, negros, indígenas e quilombolas durante a reestruturação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi). A secretaria está sendo reestruturada como projeto do atual governo, após ser extinguida na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.

— Retomamos a Secadi, onde vai ser trabalhada a questão da equidade e inclusão de pessoas com deficiências. Estamos dialogando com a comunidade negra, indígena e quilombola também, porque hoje existe uma desigualdade muito grande, que resulta nas desigualdades na educação — afirmou o ministro. — Estamos reconstruindo o Fórum Nacional de Educação, que foi paralisado em 2016, e o MEC terá como foco apoiar iniciativas como a Olimpíada de Matemática, reconstruir a politica do livro didático, das universidades, do programa escola em tempo integral para que haja equidade.

Conhecimento sobre o autismo ainda engatinha

Apesar de a Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência determinarem os direitos dos autistas em todos os âmbitos da vida, incluindo a educação, nem todas as escolas estão preparadas para atender alunos com o transtorno.

De acordo com a pesquisadora Tatiane Daby, os estudos escassos sobre o autismo tanto na área da saúde quanto da educação são fatores que dificultam a inclusão efetiva de crianças e adultos com o diagnóstico.

— Ainda não temos pesquisas efetivas que mostre como o autismo atinge o cérebro da pessoa com o diagnóstico, o que permitiria entender melhor como ele ocorre em diferentes níveis em meninos e meninas, por exemplo. 

Todo o diagnóstico hoje é feito a partir de análise de estereotipias (movimentos repetitivos comuns em pessoas com autismo) — explica Daby, que desenvolve pesquisa sobre o autismo na área da ciência e matemática na UFU, junto ao professor Guilherme Saramago de Oliveira. — Na educação, os estudos e incentivo à pesquisa ainda na graduação dos professores é bem pequena, o que dificulta também o conhecimento sobre como educar essas crianças — conclui.


Fonte: O GLOBO