Segundo o jornal britânico, os EUA colocaram em ação uma estratégia silenciosa para garantir a lisura das eleições no Brasil; em visita a Nova York, o ex-vice-presidente Hamilton Mourão admitiu preocupação

O governo Joe Biden teria atuado silenciosamente para garantir que o processo eleitoral brasileiro funcionasse nas eleições presidenciais de 2022, que elegeram Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo o jornal britânico Financial Times, houve uma campanha de pressão silenciosa do governo dos EUA para instar os líderes políticos e militares do país a respeitar e salvaguardar a democracia brasileira. Segundo fontes da publicação, até o então vice-presidente Hamilton Mourão mostrou-se preocupado com os rumos do país.

Durante a campanha eleitoral, o então candidato e presidente Jair Bolsonaro e aliados atacaram as urnas eletrônicas e colocaram em dúvida a lisura do processo eleitoral brasileiro. Atitude semelhante à do ex-presidente Donald Trump, nas eleições americanas de 2020, que culminou com seu apoiadores no Capitólio, em Washington, tentando anular os resultados do pleito em janeiro de 2021.

De acordo com as fontes do Financial Times, o governo Biden temia algo parecido no Brasil e tentou transmitir a mensagem sem parecer que estava interferindo nas eleições de outro país. A solução, segundo eles, foi uma campanha coordenada, mas sem propagandas, em vários setores do governo dos EUA, incluindo militares, CIA, departamento de estado, Pentágono e Casa Branca.

— Foi quase um ano de estratégia, sendo feito com um objetivo muito específico, não de apoiar um candidato brasileiro em detrimento de outro, mas muito focado no processo (eleitoral), em garantir que o processo funcionasse —diz Michael McKinley, ex-funcionário do departamento de estado e ex-embaixador no Brasil.

Mourão admitiu preocupação

Segundo o ex-funcionário do departamento de estado Tom Shannon, a estratégia começou com a visita do conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, ao Brasil em agosto de 2021. Um comunicado da embaixada disse que a visita “reafirmou a relação estratégica de longa data entre os Estados Unidos e o Brasil". Porém, Sullivan deixou a reunião com Bolsonaro preocupado, conta Shannon.

—Bolsonaro continuou falando sobre fraude nas eleições americanas e continuou entendendo sua relação com os Estados Unidos nos moldes da sua relação com o presidente Trump — diz Shannon, que também é ex-embaixador dos EUA no Brasil e mantém contatos próximos no país, acrescenta. — Sullivan e a equipe que o acompanhou saíram pensando que Bolsonaro era totalmente capaz de tentar manipular o resultado das eleições ou negá-lo como fez Trump. Portanto, pensou-se muito em como os Estados Unidos poderiam apoiar o processo eleitoral sem parecer interferir. E é assim que começa.

Shannon também relembrou uma visita do então vice-presidente Hamilton Mourão a Nova York para um almoço privado com investidores, em julho do ano passado, em meio à crescente tensão às vésperas das eleições. Depois de responder às perguntas sobre os riscos de um golpe, ele repetiu que estava confiante de que as Forças Armadas do Brasil estavam comprometidas com a democracia. Mas dentro do elevador ao lado do ex-embaixador, o discurso foi outro.

—Quando a porta estava fechando, eu disse a ele: ‘Você sabe que sua visita aqui é muito importante. Você ouviu as pessoas ao redor da mesa sobre suas preocupações. E compartilho dessas preocupações e, francamente, estou muito preocupado'. Mourão virou para mim e disse: ‘Eu também estou muito preocupado’.” Segundo o Financial Times, o porta-voz de Mourão se recusou a comentar.

Após a reunião de Bolsonaro com os embaixadores, em que o então presidente voltou a colocar em xeque a lisura das urnas eletrônicas, o departamento de estado americano emitiu um endosso incomum ao sistema de votação, dizendo que “o sistema eleitoral capaz e testado pelo tempo e as instituições democráticas do Brasil servem de modelo para as nações do hemisfério e do mundo”.

—A declaração dos EUA foi muito importante, principalmente para os militares — disse um alto funcionário brasileiro. — Eles recebem equipamentos dos EUA e fazem treinamento lá, então ter um bom relacionamento com os EUA é muito importante para os militares brasileiros . . . A declaração foi um antídoto contra a intervenção militar.

Mensagem reforçada

A reportagem destaca ainda a mensagem do secretário de defesa Lloyd Austin durante uma reunião regional de ministros da defesa em Brasília. As forças militares e de segurança precisam estar sob “forte controle civil”, disse ele em um discurso.

Em particular, Austin e outros oficiais explicaram aos militares brasileiros as consequências de apoiar qualquer ação inconstitucional, como um golpe. “Haveria ramificações negativas significativas para o relacionamento bilateral entre militares se eles fizessem algo e precisassem respeitar o resultado da eleição”, disse um alto funcionário do governo.

A general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, que cobre a América Latina, também reforçou a mensagem em visitas nos dois últimos anos ao Brasil, segundo disseram autoridades ao jornal. O chefe da CIA, William Burns, também esteve no Brasil e disse ao governo Bolsonaro para não mexer com as eleições.

—O secretário de defesa, o chefe da CIA, o conselheiro de segurança nacional, todos visitaram em ano eleitoral — diz Michael McKinley. —Isso é normal? Não, não é.


Fonte: O GLOBO