Para Michele Goodwin, da Universidade da Califórnia, reversão de Roe contra Wade foi um ataque à democracia americana com fortes tons raciais

Nem tanta coisa mudou entre 1820 e 2020, crê a professora de direito constitucional Michele Bratcher Goodwin, da Universidade da Califórnia, Irvine, um ano após a Suprema Corte americana reverter o direito constitucional ao aborto, garantido nos Estados Unidos por quase meio século. 

O mapa dos estados que impuseram restrições draconianas ao procedimento, afirma ela, é parecido com aquele das unidades federativas que por anos lutaram em uma guerra civil para manter a escravidão.

A reversão de Roe contra Wade é um "ataque contra a democracia" que deve ter reflexos na eleição do ano que vem, avalia Goodwin, autora de livros como Policing the Womb: Invisible Women and the Criminalization of Motherhood ("Policiando o útero: mulheres invisíveis e a criminalização da maternidade", em tradução livre). E os reveses, a seu ver, não se limitam aos direitos reprodutivos.

Como a decisão da Suprema Corte impactou o acesso ao aborto nos EUA?

Antes era relativamente consensual, até mesmo entre os mais conservadores, que vítimas de estupro e incesto, por exemplo, poderiam ser poupadas da tormenta de terminar tais gestações. O mesmo valia para gravidezes de risco. Agora esse não é mais o caso. Outro ponto é que os estados que desejam banir o aborto podem fazê-lo independentemente do tempo gestacional, não há consenso. Alguns banem depois de seis semanas, outros de oito, dez, 12. Isso cria grandes inconsistências entre os estados.

Um terceiro aspecto é que o veredicto permitiu que os estados punam pessoas grávidas, podendo criminalizar atividades relacionadas às tentativas de buscar um aborto. Eles agora podem implementar leis que permitem processar pessoas por ajudarem outras a realizarem o procedimento, algo profundamente cruel e que viola outros aspectos da Constituição. 

Pragmaticamente, isso não inclui só médicos, até porque muitos dos que realizavam abortos em estados hostis foram embora. O objetivo é punir as mães, as tias.

E isso tem implicações mais amplas para a interpretação dos direitos individuais...

Se você tem 15 anos e está gestante, pode querer falar com sua mãe ou com sua tia. Agora, se vive em um estado onde uma pessoa pode ser punida porque te ajudou a terminar uma gravidez, é mais complexo. As leis são escritas de forma tão vaga que até alguém que diga “bem, essas são suas opções” — e na lista constar o fim da gestação — pode estar potencialmente violando a lei.

E já há exemplos?

No Nebraska, por exemplo, uma mãe foi criminalmente acusada porque escreveu uma mensagem privada no Facebook para sua filha grávida de 17 anos apenas comunicando que ela poderia abortar. A filha também está respondendo na Justiça. A mudança não afeta só os direitos da Primeira Emenda [em 1973, a Suprema Corte determinou que o direito constitucional à privacidade incluía o direito de decisão sobre cessar uma gravidez], mas também a liberdade de expressão e de reunião. E não para aí.

Antes de os EUA terem uma Constituição, tinham os Artigos da Confederação, que determinavam o direito de viajar entre as colônias, que se transformavam em estados, sem os trâmites de viagens internacionais. 

O ponto central da unificação é não precisar mais navegar por tantas regras diferentes. O direito de ir e vir entre os estados é algo solene há séculos, e agora até isso é posto em risco: Há parlamentares que buscam criminalizar o direito de pessoas grávidas realizarem abortos em outros estados. O que nós vemos é um ataque contra a democracia, um ataque contra o respeito à Constituição.

O mapa dos estados onde o aborto foi restrito é similar ao da eleição de 2020...

Eles também são similares aos mapas da Confederação. O conflito mais longo da História americana foi uma guerra civil para determinar se a escravidão iria ou não continuar. Os mesmos estados que são prolíficos com legislações antiaborto mais cruéis são os que já faziam isso há 200, 300 anos. 

Temos uma história dividida, em que uma parte do país lutou até a morte para manter um sistema com pessoas sem autonomia corporal e liberdade. Não se pode dizer que Mississippi, Geórgia, Alabama, Texas, aprenderam a acabar com a escravidão por conta própria. Era um sistema que não se restringia às plantações de algodão, mas também a subjugar mulheres. Sim, é o mesmo mapa de 2020, mas também é igual ao de 1820.

Alguns estados republicanos aprovaram garantias ao direito ao aborto nas eleições parlamentares do ano passado. Há esperança?

Há como ver nisso o sinal de ao menos uma fresta para o aborto, um motivo para esperança, mas eu acho que é perigoso. O que isso faz é permitir as pessoas a olhar e dizer: “viu, não é tão ruim”. É quase como dizer: “nós retiramos todos os seus direitos, mas vamos permitir que você beba um pouco de água todos os dias”. Uma cortina de fumaça que esconde o fato de terem nos privado de uma míriade de direitos.

Como assim?

A Suprema Corte não só tomou a grave decisão de reverter Roe, mas disse que a responsabilidade de decidir sobre tais assuntos seria dos estados e do processo eleitoral. Vemos o que? Estados com práticas maciças de gerymandering [quando o redesenho distrital é propositalmente feito para beneficiar os candidatos de um partido], práticas restritivas. 

Na Geórgia, por exemplo, não se pode mais dar água para quem está na fila para votar. Tudo isso é racial, são as pessoas negras que passam quatro, cinco, seis horas na fila. Quando a Suprema Corte diz “se você não gostou, então vá votar”, basicamente deixa as pessoas de mãos atadas. Os estados que restringem o aborto são os mesmos que implementam leis para limitar o acesso ao voto.

E as tentativas de pôr nas Constituições estaduais garantias ao direito ao aborto?

Esses referendos para pôr as garantias do direito ao aborto ou de que não haveria proibições a ele foram muito importantes, bem-sucedidos para ativistas. Mas como o resultado foi positivo, há agora estados controlados por conservadores que tentam dificultar a realização de tais consultas populares, demandando supermaiorias, ao invés de maiorias simples.

A maioria dos americanos é favorável a pelo menos alguns direitos ao aborto. Por que há essa desconexão?

É essa a vergonha por trás de Dobbs (contra Jackson, o caso que derrubou o direito na Suprema Corte), mas para entendê-la por completo é necessário compreender também o ex-presidente [Donald Trump], que foi acusado criminalmente duas vezes e pode ter mais imbróglios com a Justiça. Ele deu declarações indicando que só nomearia indivíduos dispostos a reverterem Roe, e foi isso que fez, o que diz muita coisa sobre sua mentalidade e a de quem foi para os tribunais.

Na prática, o que essa nova composição significa?

Quando as leis injustas são questionadas, em alguns casos são avaliadas por juízes escolhidos a dedo de forma inconsistente com os padrões anteriores. 

Vimos isso no desafio à mifepristona, quando um juiz nomeado pelo ex-presidente [nos EUA, diferentemente do Brasil, o mandatário indica os magistrados federais], que não revelou durante sua sabatina a extensão do seu ativismo antiaborto, concedeu uma petição que teria sido rechaçada por praticamente qualquer juiz antes de Trump, fosse ele nomeado por um presidente democrata ou republicano.

[Em abril, a Suprema Corte dos Estados Unidos se esquivou de tomar uma decisão final sobre a mifepristona, pílula abortiva amplamente usada no país, retornando o caso para as instâncias inferiores. Ativistas antiaborto contestam o aval dado ao FDA, a Anvisa americana, ao uso do medicamento, cujo acesso foi ampliado pelo governo Biden após a reversão de Roe.]

Qual é a opinião da senhora sobre o imbróglio ao redor da mifepristona?

É uma piada. Para você dar entrada em um processo, deve ser pessoalmente ou profissionalmente afetado pelo assunto em questão. Entre o grupo de autores há um dentista afirmando ser afetado pela mifepristona. 

Dentistas não prescrevem o medicamento, não fazem aborto, não são afetados por isso. O juiz ter dado razão ao argumento de que haveria uma abundância de mulheres que iriam para os consultórios prejudicadas pelo medicamento não faz sentido. A mifepristona está no mercado há 23 anos e isso nunca aconteceu. Apesar disso tudo, o magistrado nomeado por Trump permitiu que o acaso prosseguisse.

Essas questões devem aparecer na corrida presidencial de 2024?

O interessante, e que vem deixando alguns republicanos nervosos, é que há mulheres republicanas que claramente contribuíram para preservar os direitos ao aborto nas eleições legislativas. Por isso, inclusive, tentam dificultar a participação eleitoral. As mulheres que foram votar não eram só democratas, mas também republicanas que se importam com seus direitos, com suas filhas. A questão sobre a mesa é: se sua filha de 10 anos for estuprada, você apoia que os governos estaduais a forcem a ser mãe aos 11 anos?

O que é preciso para que os EUA volte ma ter direito constitucional ao aborto?

A primeira maneira seria se todos os estados implementassem leis que seguissem adiante, com referendos para aprovar emendas nas Constituições estaduais que permitam o aborto, como fizeram Vermont, Califórnia e Michigan, por exemplo. Outra forma é se o governo federal aprovar uma legislação, e a Lei de Proteção à Mulher tramita o no Congresso há um tempo, mas sem votos suficientes. 

Uma terceira possibilidade seria se a Suprema Corte mudasse, outro processo relacionado ao assunto voltasse ao tribunal e decidisse reverter Dobbs. Há uma quarta opção, que seria a adoção ou ratificação de algo internacional, mas os EUA são muito resistentes a seguirem tratados da ONU: até hoje não ratificamos a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher [de 1979], que protege os direitos das mulheres e que algumas interpretações afirmam proteger o direito ao aborto.


Fonte: O GLOBO