Celebrada referência do feminismo negro conta quando e como se encantou com a obra do pernambucano que é o maior filósofo da educação brasileiro, tema de sua palestra no Festival LED

Não é à toa que Paulo Freire é considerado o mais importante filósofo da educação brasileiro. Durante o Festival LED — Luz na Educação, a celebrada socióloga Patricia Hill Collins, uma das referências do feminismo negro, contou de que formas as ideia de “Pedagogia do Oprimido”, principal livro do pernambucano, influenciaram sua trajetória como professora e pesquisadora. Ao GLOBO, a americana conta como conheceu a obra e por que se encantou pela abordagem.

— Freire se concentra no poder, esse é o coração de sua pedagogia — resume.

Quando a senhora conheceu a obra de Paulo Freire?

Encontrei Freire pela primeira vez como parte de meu treinamento como professora quando era aluna da Harvard Graduate School of Education. Sou MAT (Master of Art em ensino) e a obra de Freire foi importante no meu programa. O ensino era visto como uma arte, como algo criativo, e não como um mero compartilhamento de habilidades técnicas.

O que mais chamou a atenção naquele momento?

A noção de educação bancária de Freire, em comparação com a educação para a consciência crítica, oferecia uma moldura para a compreensão das experiências políticas que estavam acontecendo naquele momento. Estive lá em 1969-1970, uma época de substancial agitação política por parte de jovens que questionavam a autoridade. 

Nos Estados Unidos, o movimento negro fazia parte de uma luta mais ampla pelos direitos civis e do movimento Black Power, com o reconhecimento de como as ideias e a escolaridade eram fundamentais para o empoderamento político.

Foi o caso de ler “Os Condenados da Terra”, de Franz Fanon (sobre a opressão negra), e “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire (sem uma análise explicitamente racial). O anticolonialismo na África francófona e a luta contra a ditadura no Brasil deram origem a esses dois livros que conversam entre si. O que fizemos foi lê-los criticamente para obter uma visão sobre como eles poderiam falar sobre as realidades da vida dos negros nos Estados Unidos.

Como utilizou as ideias de Freire como professora?

As ideias só podem ser aplicadas no contexto. Assim, o desafio está em criar as condições que tornem possível o tipo de educação sugerido por Freire. No meu caso, fui trabalhar no movimento de escolas da comunidade negra em Boston, Massachusetts. Eu estava trabalhando em espaços alternativos, que preparavam os alunos para enfrentar o mundo, mas para ter espaço para sonhar. 

Fizemos muito o que vejo acontecendo aqui no Brasil: a retomada do passado como forma de imaginar e agir para avançar para o futuro. Foi um movimento de afrofuturismo com o próprio termo, traduzindo a ideia de consciência crítica em um espaço de sala de aula dentro do movimento de escolas comunitárias negras. Naquela época, as escolas da comunidade negra eram extensões do movimento Black Power mais amplo.

Como o feminismo negro pode se beneficiar das ideias de Paulo Freire?

Acho que já existe uma boa correspondência entre as ideias de Freire na “Pedagogia do Oprimido” e a visão de mundo do feminismo negro. Essa noção de “ler” as relações de poder informa o contínuo aprofundamento da análise do feminismo negro sobre os sistemas de poder. Assim como você “lê” um livro durante um período de sua vida e, quando volta a ele mais tarde, o “lê” de maneira diferente, muitas vezes com base em sua experiência ou mudanças no mundo. 

O feminismo negro também continua a retornar à sua questão básica de “o que será necessário para que as mulheres negras sejam livres” e aprofundar por meio da análise interseccional. A releitura da sociedade por meio de uma consciência crítica adiciona lentes às relações de poder na vida das mulheres negras. Essa maneira de ler se alinha com o processo de autorreflexão de Freire. Na “Pedagogia da Esperança”, ele revisita seu trabalho anterior com mente aberta e por meio das experiências vividas.

Qual é o seu livro favorito de Paulo Freire? Por quê?

Definitivamente, “Pedagogia do oprimido”, principalmente pelo uso do termo “oprimido”. Freire se concentra no poder — esse é o coração de sua pedagogia. Atualmente, nos afastamos desse tipo de nomeação direta das relações de poder. Freire escreveu no exílio. O poder era onipresente em sua vida cotidiana e em sua capacidade de fazer trabalho intelectual. 

O termo “oprimidos” — que significa povos oprimidos — foi enfraquecido por tantos eufemismos como “marginalizados” (uma análise espacial do poder que, embora possa descrever o poder, tem um poder explicativo mínimo). O termo oprimido descreve uma hierarquia política com as estratégias de dominação política usadas para mantê-lo. 

Seu trabalho se presta a examinar muitos tipos de hierarquias e estratégias, por exemplo, raça, gênero, sexualidade, classe, nação. O livro é apropriado para o Brasil — oprimido capta as realidades das pessoas que vivem na rua —, mas também serve de lição para outros contextos nacionais de que a questão não é de identidade, mas de poder.

Como a escola pode contribuir para uma sociedade com menos preconceito de gênero e racial?

As escolas são locais de aprendizado político, quer tenham ou não esse objetivo explícito. Elas nos ensinam nossos lugares e propósitos.


Fonte: O GLOBO