Na confusão sobre o encontro não realizado entre Lula e Zelensky, o governo brasileiro havia sido informado, pelo menos duas vezes, desde o dia 10 de maio, que havia chance de o ucraniano participar presencialmente da cúpula do G7

Desde que assumiu o governo no início do ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva elegeu como aposta de protagonismo internacional, além das ações na área de meio ambiente — para se distanciar das políticas danosas de seu antecessor, Jair Bolsonaro — a mediação da paz na guerra entre Rússia e Ucrânia, a maior na Europa desde a Segunda Guerra, com consequências desastrosas para todo o planeta. 

Desde então, Lula não perde oportunidade de falar sobre o tema em palcos internacionais, já tendo conversado pessoalmente com os presidentes dos EUA, Joe Biden, da França, Emmanuel Macron, da China, Xi Jinping, e com o chanceler alemão, Olaf Scholz, entre outros.

Declarações polêmicas

No entanto, declarações polêmicas suas na China e nos Emirados Árabes sobre o tema acusando EUA e Europa de incentivarem a guerra, atribuindo à Ucrânia — que foi invadida pelos russos — culpa igual pelo conflito e, no último fim de semana, um mal explicado não-encontro com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, na cúpula do G7 no Japão, acabaram ofuscando conquistas do brasileiro em suas viagens internacionais. 

Apesar de ter conseguido acordos de investimento de US$ 62 bilhões na China e nos Emirados Árabes, a suspensão da exigência de vistos para brasileiros no Japão, e a inclusão do combate à fome na declaração final do G7, Lula vê tais feitos ficarem em segundo plano diante das polêmicas envolvendo a Ucrânia.

Ao GLOBO, um integrante do governo brasileiro reconheceu que o último episódio em torno da confusão sobre a reunião bilateral entre Lula e Zelensky no G7, em Hiroshima — que acabou não ocorrendo num vaivém de versões — teve impacto negativo e ofuscou as vitórias de Lula na cúpula.

— Lula não faz mal em defender a paz e o diálogo, mas o Brasil não é protagonista em temas de segurança internacional, e sim em questões ambientais, saúde ou na defesa do multilateralismo — pondera Fábio Borges, diretor do Instituto Latino-Americano de Economia Sociedade e Política da Unila.

Para o professor Rodrigo Gallo, cientista político e coordenador da pós-graduação de Política e Relações Internacionais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), as idas e vindas de Lula dentro do tema Ucrânia e suas falas, por vezes improvisadas, jogam para segundo plano as realizações do governo na agenda internacional diante de incidentes e deslizes.

— Quando é preciso recuar e refazer a narrativa, alegando que houve uma falha na interpretação do discurso, é sempre negativo, principalmente em política externa, onde os países tendem a ter um padrão de repetição e recorrência — explica Gallo. — Talvez as inconsistências se devam ao fato de que a gente ainda vive um momento pós-eleitoral, em que o governo está procurando uma identidade que destaque este governo do anterior.

Na confusão sobre o encontro não realizado entre Lula e Zelensky, o governo brasileiro havia sido informado, pelo menos duas vezes, desde o dia 10 de maio, que havia chance de o ucraniano participar presencialmente da cúpula do G7. Na prática, isso significa que sua chegada ao Japão, após participar de uma cúpula da Liga Árabe na Arábia Saudita, não foi exatamente uma surpresa.

Ida de Zelensky ao Japão

Em 10 de maio, autoridades do governo japonês informaram ao Itamaraty que havia a possibilidade de Zelensky ir a Hiroshima, mas ainda dependia, entre outras coisas, da garantia de que estaria em segurança. 

No mesmo dia, o assessor para assuntos internacionais do Palácio do Planalto, Celso Amorim, perguntou diretamente a Zelensky se ele iria ao Japão, durante uma reunião em Kiev. Ao GLOBO, Amorim disse que o presidente da Ucrânia respondeu que sua ida dependeria da “situação no terreno”.

Também durante a visita de Amorim, Zelensky reiterou o convite para que Lula fosse visitá-lo em Kiev. Mas deixou claro que o único plano de paz a ser usado em uma eventual negociação com a Rússia é a fórmula elaborada pelo governo ucraniano.

Lula vem defendendo a criação de um clube de nações para intermediar a paz. No mês passado, ele viajou à China para discutir a proposta de cessar-fogo do presidente Xi Jinping, que efetivamente congelaria as tropas russas na Ucrânia. Zelensky rejeita qualquer estrutura que não envolva a retirada total das forças russas, posição também repetida pelo G7 no Japão.

A presença do presidente da Ucrânia roubou a cena no G7 e reforçou, entre vários itens a serem debatidos, a guerra entre Ucrânia e Rússia, que começou em fevereiro do ano passado. Zelensky chegou a solicitar um encontro com Lula paralelamente ao evento, mas a versão brasileira é de que a reunião não ocorreu porque a delegação ucraniana, após fazer gestões para isso, não entrou mais em contato.

Segundo uma fonte do governo ouvida pelo GLOBO, nenhuma das delegações cogitou que o encontro ocorresse no sábado, quando Zelensky foi recebido pelo premier da Índia, Narendra Modi, cujo país se nega a condenar a agressão russa na Ucrânia. No domingo, Zelensky se encontrou com o presidente da Indonésia, Joko Widodo, que defende esforços de paz, em uma posição mais neutra.

No sábado, Lula já tinha encontros marcados com o Fundo Monetário Internacional, Macron, Scholz, além do jantar oferecido pelo país anfitrião. Por sua vez, Zelensky, além de Modi, reuniu-se com Macron, Scholz, e os primeiros-ministros do Reino Unido, Rishi Sunak, e da Itália, Giorgia Meloni.

O primeiro horário pedido pela equipe de Zelensky, disse a fonte, foi às 18 horas (hora local do Japão) de domingo. Depois, solicitou que o horário mudasse para as 17 horas, e, finalmente, para as 15h. Depois dessa última troca de mensagens entre as delegações, os ucranianos, relatou essa fonte, “ficaram mudos e sumiram”. 

No domingo, além do encontro com Widodo, Zelensky manteve uma bilateral com Biden, e o premier do Japão, Fumio Kishida, anfitrião do evento, com quem visitou o memorial para as vítimas do bombardeio nuclear contra Hiroshima, em 1945.

Antes de o governo ucraniano fazer o convite para uma bilateral, informação divulgada no Brasil na sexta-feira, Lula não tinha a intenção de se encontrar com Zelensky. No G7, o único momento em que os dois estiveram no mesmo ambiente foi em uma das sessões coletivas sobre paz, estabilidade e prosperidade global, em que o brasileiro reiterou a condenação por parte do Brasil à invasão russa. Lula, que estava sentado de frente para Zelensky, não se levantou para cumprimentá-lo, ao contrário de outros mandatários.

Acenos ao Brasil

Mas, apesar do não alinhamento ao tratamento dispensado por EUA e aliados a Zelensky, segundo a fonte, Lula reagiu de forma positiva ao convite para a bilateral, sob o cálculo de que o habilitaria, no futuro, a fazer o mesmo com o presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Durante uma coletiva no Japão no sábado, Zelensky disse que “todos têm suas próprias agendas, por isso que não pudemos nos reunir com o presidente brasileiro”.

O desencontro de agendas de Lula e Zelensky causou estranheza entre interlocutores ouvidos pelo GLOBO. A falta de afinação com as autoridades ucranianas, disseram, vai de encontro ao anunciado após a viagem de Celso Amorim a Kiev, classificada como um êxito pelo governo. As fontes apontam que, caso tivesse sido realmente profícua, a ida de Amorim à capital ucraniana provavelmente teria encaminhado a reunião entre os presidentes, e não resultado no incidente diplomático que se viu.

Zelensky já fez acenos ao Brasil desde o início deste ano. Na coletiva que concedeu em 24 de fevereiro, que marcou o primeiro ano do conflito, Zelensky convidou Lula a ir a Kiev, dizendo que queria sua ajuda para fazer a Ucrânia ser mais bem compreendida na América Latina. Desde então, o convite foi repetido algumas vezes, inclusive durante uma conversa por vídeo em março.

Ao ser repetidamente questionado sobre o conflito e a não realização do esperado encontro entre ele e Zelensky, o presidente brasileiro foi categórico durante uma coletiva no domingo (manhã de sábado no Japão).

— Eu não vim ao G7 discutir a guerra na Ucrânia — disse, afirmando que “aqui no G7 viemos para discutir economia e a questão do clima”. — O espaço para discutir a guerra não é no G7 nem no G20, mas na ONU, dentro do Conselho de Segurança.

‘Refinar a estratégia’

Também afirmou que a China e um grupo de países do Sul, incluindo Brasil, Índia e Indonésia, defendem uma iniciativa que coloque a paz em discussão, enquanto o Norte, em referência ao Ocidente, “quer a guerra”. Composto pelas democracias mais industrializadas do mundo, o G7 é formado por Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido. Lula também disse que não medirá esforços para uma reunião com Zelensky e Putin, quando os dois mostrarem disposição para discutir a paz.

— Nesse sentido, o posicionamento que o Brasil teve em relação à guerra na Ucrânia pode ter trazido um maior questionamento do mundo em relação à configuração que nós temos hoje. Isso também se traduz na questão do Conselho de Segurança da ONU, inclusive no contexto da guerra, para que houvesse um outro mecanismo e outra resolução do conflito no âmbito da ONU — diz Valentina Sader, especialista em Brasil e América Latina do Atlantic Council, em Washington.

De acordo com o professor Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard e ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, o discurso de Lula no G7 abordou preocupações importantes da política externa brasileira, mas o Brasil ainda precisa “granular melhor a sua abordagem e refinar de forma mais apurada a sua estratégia” para não cair em “armadilhas desnecessárias”.

— A política externa brasileira ainda não ganhou um formato definitivo de modulação e requer uma maior agudeza estratégica, longe de narrativas falsas e visões preconcebidas que podem prejudicar os grandes projetos do governo do presidente Lula. Há pontos positivos e há pontos que merecem atenção e ajustes para que não gerem erros estratégicos de maior dano — afirmou.


Fonte: O GLOBO