Império Britânico, no início do século XX, chegou a ocupar 25% das terras do planeta, mas hoje territórios ultramarinos são apenas 14; encolhimento reflete mudança no papel ocupado pelo Reino Unido

No início do século XX, não havia noite no Império Britânico, com um território que chegou a englobar quase um quarto das terras e 23% da população do planeta. Quando o rei Charles for formalmente coroado no sábado, os territórios ultramarinos do Reino Unido serão apenas 14: o maior deles, as Ilhas Falkland (ou Malvinas, para os argentinos) com uma área aproximada de 12,2 mil km². Sergipe, o menor estado brasileiro, tem cerca de 21,9 mil km².

São transformações territoriais ajudam a contar a História recente da Humanidade, das grandes navegações às duas guerras mundiais, passando pela Revolução Industrial. É também indissociável do movimento de descolonização que ganhou fôlego no século passado. Não à toa, quando em 1997 foi representar sua mãe na cerimônia de devolução de Hong Kong à China, o então príncipe Charles escreveu em seu diário que vivia o "fim do Império Britânico'".

A assinatura do Tratado de Versalhes, que marcou o fim da Primeira Guerra Mundial em 1919, pôs sob comando britânico algumas colônias alemãs na África e na Oceania. Apenas três anos depois, contudo, duas peças significativas do território, a República da Irlanda e o Egito, ganharam sua independência — os primeiros sinais de decadência, portanto, vieram antes mesmo de a mãe de Charles, a rainha Elizabeth II, nascer em 1926.

Nos 26 anos até que a monarca ascendesse ao trono, as mudanças foram velozes, fenômeno indissociável da Segunda Guerra Mundial. Os impactos de um conflito catastrófico não pouparam a economia britânica, e o altíssimo endividamento custou caro. Havia também uma nova ordem mundial, o raiar da Guerra Fria, e um Reino Unido cujo posto de potência ocidental foi perdido para um país que nasceu em 1776 a partir de 13 colônias no Novo Mundo.

Na mesma época, não à toa, fortaleciam-se os clamores pró-independência nas colônias, exploradas por séculos para bancar o desenvolvimento e enriquecimento da metrópole e ceder seus homens para guerras que a Londres interessavam. Um grandíssimo golpe para os britânicos veio em 1947 com a secessão de sua joia da coroa, o subcontinente indiano, impulsionada pelo movimento não violento de Mahatma Gandhi.

Da divisão veio dois países, separados de acordo com linhas religiosas: a maioria hindu, nas partes central e sul, ficaria na Índia, enquanto duas partes no nordeste e noroeste seriam o Paquistão. À divisão seguiram-se conflitos que mataram milhares — cálculos chegam a falar em até 2 milhões de pessoas — e o deslocamento interno de algo entre 14 e 18 milhões de pessoas. A relação entre os vizinhos é até hoje tensa.

No ano passado, a Índia ultrapassou o Reino Unido, tornando-se a quinta maior economia do mundo. Em algum momento deste ano, se tornará também o país mais populoso do planeta — posto que pela primeira vez será ocupado por uma democracia, mesmo que imperfeita.

Quando houve a partição da Índia britânica, já estava claro que o Reino Unido não conseguiria sustentar sua vastidão extramarina por muito mais tempo. Na maior parte dos casos, não se oporiam às independências, mas tentariam conduzir os processos de forma a não deixar as futuras ex-colônias migrarem para a órbita de influência soviética.

No ano seguinte à criação de Índia e Paquistão, a retirada britânica da Palestina deu pontapé em um conflito que até hoje segue sem solução. Quase simultaneamente, as forças militares do Império Britânico responderam militarmente aos anseis separatistas do Exército de Liberação Nacional Malásia, uma guerrilha comunista. Milhares de pessoas morreram durante a chamada Emergência Malaia e os opositores foram contidos. A independência, em outro processo navegado com Londres, viria em 1957.

O país do Sudeste Asiático foi um dos mais de 30 que declararam sua independência durante as sete décadas em que Elizabeth II esteve à frente do governo britânico, entre 1952 e sua morte em 2022. O começo do reinado da mãe de Charles é indissociável do poderio britânico principalmente na África — as viagens da monarca ao continente ajudaram a consolidar sua imagem como chefe de Estado.

A primeira colônia africana a se tornar independente do Reino Unido foi Gana, em 1957. Na década seguinte, mais 20 territórios britânicos se tornaram autônomos. Em 1960, foi a Nigéria e, no ano subsequente, Serra Leoa e Tanzânia se separaram. Uganda se tornou independente em 1962, um ano antes do Quênia. Em 1964, foi a vez de Gâmbia. Botsuana, Lesoto e Barbados conquistaram suas independências dois anos depois.

Um dos ponto fora da curva na descolonização foi a Guerra das Malvinas, em 1982, quando o general Leopoldo Galtieri, chefe da junta militar argentina, quis retomar as ilhas das mãos inglesas. Sob ordens da primeira-ministra Margareth Thatcher, as forças britânicas revidaram de forma arrasadora: em 74 dias, morreram cerca de mil soldados, mais de 600 argentinos.

Galtieri à época buscava unir a população contra o colonizador para impulsionar o mal-visto governo ditatorial — algo que a curto prazo até teve algum sucesso — e fugir de problemas domésticos como o desemprego e a escalada da inflação. Impulsionou também, contudo, um governo Thatcher que estava em baixa, essencial para garantir sua reeleição.

Um dos últimos pedaços a se desvincular foi Hong Kong, em 1997, ponto final no colapso do império. A rainha tentou manter algum resquício de seu império vivo com a Comunidade Britânica (Commonwealth, em inglês), grupo de 56 países criado para manter uma associação entre a metrópole e suas ex-colônias cuja força está em seus “valores compartilhados e diversidade”.

A simbologia do grupo sempre foi maior do que a força política. Charles ainda é rei de 14 delas, onde a figura da monarquia é principalmente cerimonial, mas pode não durar muito frente aos anseios republicanas. Uma baixa veio em 2020, quando Barbados oficialmente se tornou uma República.

A Comunidade se misturava com a rainha, mas os sentimentos vinham se tornando mais ambíguos pois os pedidos de desculpas pelas atrocidades cometidas em nome do reino nunca vieram. Não houve pedido de perdão pelos cerca de 3,2 milhões de africanos que os britânicos transportaram para as Américas, tráfico iniciado pela rainha Elizabeth I no século XVI.

Também faltou um reconhecimento formal de que o enriquecimento da própria família real veio às custas de sangue e exploração. O novo rei talvez se diferencie de sua mãe — neste mês, o Palácio de Buckingham declarou seu apoio a um projeto de pesquisa sobre o papel da monarquia britânica na escravidão —, mas sua popularidade dificilmente se igualará à dela.

Também há questões em casa: a província da Escócia, demandas pró-independência são onipresentes e o governo local no ano passado apresentou uma proposta para um novo referendo pela separação. Entre os anos 1960 e o Acordo da Sexta-Feira Santa, há 25 anos, os norte-irlandeses favoráveis à permanência no Reino Unido travaram um conflito com os defensores da unificação das Irlandas.


Fonte: O GLOBO