'Tem uma parte que quer guerra e outra que quer a paz, e espero que a parte que quer a paz saia vencedora disso', disse o presidente brasileiro em coletiva em Hiroshima

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva terminou sua participação na cúpula do G7 em Hiroshima sem se reunir com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e deixando ainda mais marcadas suas diferenças com o “Norte” — uma referência aos EUA e à União Europeia —, não só no que se refere à guerra na Ucrânia, mas também aos interesses do Brasil nas relações com países como a China.

Durante uma coletiva neste domingo (manhã de sábado no Japão), Lula afirmou que a China e um grupo de países do Sul, incluindo Brasil, Índia e Indonésia, defendem uma iniciativa que coloque a paz em discussão, enquanto o Norte, em referência ao Ocidente, “quer a guerra”. Composto pelas democracias mais industrializadas do mundo, o G7 é formado por Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido.

— Ontem [domingo] vocês viram o discurso do presidente [americano Joe] Biden, que não fala em paz, ou seja, ele fala que a Rússia tem que sair [da Ucrânia], e não sei se vai acontecer — disse. — Então tem uma parte que quer guerra e outra que quer a paz, e espero que a parte que quer a paz saia vencedora disso.

Posteriormente, ao ser repetidamente questionado sobre o conflito e a não realização do esperado encontro entre ele e Zelensky, o presidente brasileiro foi categórico:

— Eu não vim ao G7 discutir a guerra na Ucrânia — disse, afirmando que "aqui no G7 viemos para discutir economia e a questão do clima". — Disse no meu discurso que as discussões sobre a guerra deveriam estar acontecendo na ONU. O espaço para discutir a guerra não é no G7 nem no G20, mas na ONU, dentro do Conselho de Segurança. — afirmou.

Lula se referia a um discurso feito na sessão de trabalho “Rumo a um mundo pacífico, estável e próspero”, da qual Zelensky também participou, em que defendeu a integridade territorial da Ucrânia, afirmou que a Rússia deve explicações sobre a invasão, mas pontuou a necessidade de o debate ocorrer no âmbito da ONU.

No pronunciamento, ele também criticou o Conselho de Segurança da ONU, cujos membros permanentes são EUA, Rússia, China, França e Reino Unido.

— Os membros permanentes perpetuam a antiga tradição de realizar guerras não autorizadas, que sejam com objetivos de expansão territorial ou mudança de regime — afirmou no discurso, em referência à invasão do Iraque, em 2003, por uma coalizão liderada pelos EUA.

Na coletiva, reiterou a necessidade de reforma no órgão, com a retirada do poder de veto e a entrada de mais países da África e da América Latina, afirmando que “a ONU não tem mais autoridade pra manter a paz no mundo porque são os membros do Conselho de Segurança que fazem guerra”.

— Não tem ninguém ali para discutir paz. São todos envolvidos. Os membros do conselho são os que produzem e vendem armas — afirmou. — É preciso mudar a lógica das Nações Unidas. O mundo de 2023 não é o de 1945.

Encontro frustrado

Questionado sobre o encontro com Zelensky, que fez uma aparição surpresa na cúpula e convidou o líder brasileiro para uma bilateral, Lula disse que sua equipe marcou um horário, mas Zelensky não compareceu.

— O fato é simples. Tinha uma bilateral com a Ucrânia às 15h15 [deste domingo]. Nós esperamos e recebemos a informação que eles atrasaram — declarou Lula, acrescentando: — A Ucrânia não apareceu. Certamente teve outro compromisso.

Durante uma coletiva mais cedo, Zelensky disse que “todos têm suas próprias agendas, por isso que não pudemos nos reunir com o presidente brasileiro”. Ao ser questionado por repórteres em Hiroshima se estava desapontado por não ter encontrado Lula, Zelensky respondeu com um sorriso malicioso:

– Acho que ele ficou desapontado.

Quando perguntado se havia ouvido a declaração de o líder ucraniano, Lula afirmou que só ficou “chateado” por não tê-lo encontrado, mas que "Zelensky é maior de idade, sabe o que faz". Também afirmou que não medirá esforços para uma reunião com ele e Putin, quando os dois mostrarem disposição para discutir a paz.

— O que eu sinto é que nem o Putin nem o Zelensky estão falando em paz nesse momento. Me parece que os dois acreditam que alguém vai ganhar e não precisam discutir a paz. — afirmou. — Paz só é possível se os dois quiserem.

A expectativa do encontro foi frustrada após uma demora do Brasil em responder ao convite, feito dois dias antes, e mesmo enquanto Kiev tenta engajar os países do Sul Global a adotar uma posição mais dura contra a Rússia. No evento, Zelensky se reuniu com o premier da Índia, Narendra Modi, cujo país se nega a condenar a agressão russa na Ucrânia, e também com o presidente da Indonésia, Joko Widoko, que defende esforços de paz.

Funcionários brasileiros afirmaram que ao menos dois horários foram oferecidos a Zelensky na tarde deste domingo – último dia da cúpula, quando o líder ucraniano já tinha encontros marcados com Biden e o premier do Japão, Fumio Kishida, anfitrião do evento, com quem visitou o memorial para as vítimas do bombardeio nuclear contra Hiroshima, em 1945.

Mediação em risco?

Para Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), a aparente relutância do Brasil no encontro, a princípio, não desqualifica o país como um possível mediador no conflito. O professor lembrou que o Brasil foi o único integrante dos Brics a votar a favor de uma resolução na ONU condenando os ataques da Rússia à Ucrânia.

Essa postura, afirmou o professor, diferencia o Brasil da Índia. Na visão de Loureiro, Nova Délhi tem uma parceria mais estratégica com a Rússia do que o Brasil. Outra diferença seria o fato de Lula ter enviado o assessor para assuntos Internacionais da Presidência, o ex-chanceler Celso Amorim, para Moscou e, posteriormente, para Kiev.

— Então, houve uma tentativa do Brasil de equilibrar o que foi considerado uma posição brasileira em determinados momentos mais pró-Rússia. Isso, resumindo, leva à conclusão que o ato isolado de não ter se encontrado não desqualifica a possibilidade de o Brasil atuar como mediador — disse ao GLOBO na manhã deste domingo, antes da coletiva de Lula em Hiroshima.

A mesma opinião foi compartilhada por Guilherme Casarões, cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV), para quem o Brasil tem procurado adaptar sua narrativa sobre o conflito, abandonando algumas das primeiras declarações de Lula e enviando Amorim a Kiev.

— Esse episódio isolado, portanto, não me parece impedir os esforços brasileiros de mediação coletiva — afirmou.

Já para o ex-embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero, ao deixar passar a oportunidade do encontro, o Brasil diminui sua relevância na discussão sobre o conflito.

— Não sei se houve impossibilidade real de agenda ou se faltou vontade e, neste caso, de quem foi a falta de interesse. Sem informação factual, seria leviano especular. De qualquer modo, não facilita um eventual papel de mediação de Lula e confirma a pouca relevância do Brasil no tema.

Agenda climática e dolarização

A agenda climática, uma das prioridades do presidente brasileiro, também foi abordada durante a coletiva. Em nova crítica ao "mundo rico", Lula afirmou que muitos líderes se limitam a um discurso eleitoreiro com a pauta ambiental, afirmando que precisam honrar seus compromissos.

— O Protocolo de Kyoto existe há quanto tempo? O Acordo de Paris existe há quanto tempo? E quantos países os cumpriram? — questionou, enfatizando que o Brasil honrará o seu compromisso de zerar o desmatamento até 2030 e reiterando sua proposta de criação de uma governança global sobre a questão climática.

Na coletiva, Lula também defendeu a posição de distanciamento do dólar, que compartilha com a China e Rússia, afirmando sonhar com o uso de várias moedas no comércio internacional para não ser dependente de uma só.

— Não é possível ficar dependendo de uma moeda que você não produz — disse. — Eu sonho com a construção de várias outras moedas entre países que tenham grande comércio para que a gente não seja dependente só de uma moeda. Espero que o banco dos Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] crie uma moeda, como o euro. É só a gente ir criando as condições políticas e econômicas para fazer isso.

Lula já havia manifestado essa posição em abril, durante viagem a Pequim, onde defendeu o fim da dolarização no comércio entre os países-membros do Brics. No fim de março, quando recebeu em Moscou o presidente da China, Xi Jinping, Putin afirmou que desejava usar o yuan chinês no lugar da moeda americana em acordos entre a Federação Russa e os países da Ásia, África e América Latina.

O presidente Lula afirmou esperar que não ocorra uma Guerra Fria entre a China e os Estados Unidos, ressaltando que o gigante asiático é o maior parceiro comercial do Brasil.

— Não quero que aconteça uma Guerra Fria entre China e EUA, e que a gente fique submetido à disputa dos dois.


Fonte: O GLOBO