Pandemia e aumento da violência e do desemprego na América Latina estão entre os fatores que impulsionam milhares de pessoas a tentarem cruzar a fronteira ilegalmente

Milhões de pessoas estão deixando suas casas em toda a América Latina em números não vistos em décadas, muitas delas seguindo em direção aos Estados Unidos.

Embora a migração para a fronteira Sul dos EUA sempre tenha ocorrido em níveis instáveis, a pandemia e a recessão subsequente atingiram a América Latina com mais força do que qualquer outro lugar do mundo, mergulhando milhões na fome, na miséria e no desespero.

Uma geração de progresso contra a pobreza extrema foi dizimada. O desemprego atingiu o maior nível em duas décadas. A invasão da Ucrânia pela Rússia bloqueou uma importante via para o abastecimento de grãos e fertilizantes, provocando um aumento nos preços dos alimentos.

Os choques econômicos foram agravados pela violência, à medida que os conflitos entre grupos armados surgiram em países outrora relativamente pacíficos e se intensificaram em locais há muito acostumados ao terror.

Em meio a esses eventos, contrabandistas e migrantes lançaram poderosas campanhas de mídia social, muitas repletas de desinformação, que incentivaram as pessoas a migrar para os EUA.

Esse acúmulo de fatores sombrios significa que, com a suspensão da restrição de fronteira como o Título 42 nesta quinta-feira, os EUA serão confrontados com um desafio de imigração ainda mais assustador do que o enfrentado quando a medida foi imposta pela primeira vez, durante a pandemia de Covid-19.

— Não poderia surgir um conjunto de fatos pior para deixar dezenas de milhões de pessoas sem escolha a não ser se mudar — disse Dan Restrepo, que atuou como principal conselheiro do presidente Barack Obama para a América Latina. — É inevitável que haja um deslocamento maciço. É realmente uma tempestade perfeita.

Nos últimos três anos, o governo americano tentou reduzir o fluxo recorde de pessoas que chegam às suas fronteiras usando a medida de saúde pública para expulsar rapidamente aqueles que entraram ilegalmente no país.

No entanto, com o fim do Título 42, os migrantes que entrarem no país ilegalmente terão a oportunidade de solicitar asilo, algo que muitos foram impedidos de fazer durante os três anos em que a restrição de saúde pública estava em vigor.

A qualificação, contudo, não será fácil. O governo Biden está implementando novas restrições de elegibilidade e, se o processo funcionar como planejado, muitos ainda serão deportados com relativa rapidez.

Mas os grandes fluxos crescentes no norte do México podem sobrecarregar o sistema, o que significa que mais pessoas, especialmente famílias e crianças, podem ser liberadas apenas com uma notificação para comparecer perante um juiz de imigração americano em uma data futura.

Em alguns casos, a mídia social está sendo usada para anunciar falsamente as próximas mudanças nas regras de fronteira como a abertura das comportas. No TikTok, as postagens com a tag #titulo42 foram visualizadas mais de 96 milhões de vezes, com uma postagem popular afirmando: “11 de maio: você não pode ser deportado. O título 42 chegou ao fim.”

O número de confrontos na fronteira já aumentou nos últimos dias, um salto que as autoridades americanas esperam que dure apenas algumas semanas e depois diminua.

Muitos migrantes vêm de lugares como a Venezuela, que passava por uma das piores crises econômicas do mundo antes da pandemia. Grande parte do país afundou ainda mais na miséria quando o coronavírus fechou o mundo. Uma saída em massa se aprofundou, elevando o número total de venezuelanos que fugiram desde 2015 para 7,2 milhões – aproximadamente um quarto da população.

Na Colômbia, onde as proteções aos trabalhadores são fracas, o desemprego atingiu a maior taxa já registrada. O Brasil registrou o segundo maior número de mortes por Covid-19 no mundo. Imigrantes que já haviam viajado da América Latina para esses dois países ficaram entre os primeiros a perder qualquer esperança de sustento.

Os nicaraguenses historicamente migraram para o Norte em números relativamente pequenos. Mas a inflação, a queda dos salários e um governo cada vez mais autoritário levaram centenas de milhares a deixar o país nos últimos anos.

A violência de gangues e os homicídios explodiram no relativamente tranquilo Equador. O Haiti foi atingido por um surto de cólera, uma crise extrema de fome e uma guerra entre grupos criminosos armados – tudo ao mesmo tempo.

O Estreito de Darién, um trecho traiçoeiro de 112 quilômetros de selva que liga a América Central e do Sul, de repente se tornou uma via para pessoas sem visto ou dinheiro para fazer a viagem de qualquer outra maneira.

As Nações Unidas esperam que até 400 mil pessoas passem pelo local neste ano, quase 40 vezes a média anual registrada entre 2010 e 2020.

Sentado dentro de uma tenda rosa em uma praia colombiana não muito longe da selva no ano passado, o soldador e pedreiro Willian Gutiérrez, de 31 anos, disse que a situação em casa na Venezuela foi de mal a pior. Ele não tinha um trabalho estável há anos, as refeições eram escassas, e às vezes "parava de comer para que eles pudessem”, disse ele, apontando para seus filhos, Ricardo, de 5 anos, e Yolayner, de 2.

A família morava em uma casa inacabada e sem eletricidade em Maracaibo, uma cidade rica em petróleo, explicou a esposa de Gutiérrez, Johana García, de 38 anos. Depois de ver tantos amigos partindo para os EUA, ela disse, eles decidiram arriscar a caminhada.

Eles foram porque a economia americana se recuperou rapidamente do coronavírus e aumentou a demanda por trabalhadores.

Mas eles também foram informados — por contrabandistas humanos, parentes e pessoas postando no Facebook, TikTok e WhatsApp — que, sob o presidente Joe Biden, eles poderiam realmente cruzar a fronteira e ficar.

As autoridades de fronteira americanas usaram regularmente o Título 42 para repelir imediatamente as pessoas que entraram no país ilegalmente, invocando-o mais de 2,8 milhões de vezes desde março de 2020.

Mas o México só concordou em receber migrantes expulsos de um punhado de países da região, forçando o governo Biden a enviar outros de volta para suas terras – um processo mais lento, limitado pelo custo, logística e pelo fato de que alguns governos nem sempre aceitaram voos de expulsão dos Estados Unidos.

— O que no papel foi, de certa forma, a política de fronteira mais severa já posta em prática, como uma proibição total e completa de entrada, nunca funcionou assim na prática — disse Aaron Reichlin-Melnick, diretor de políticas do Conselho de Imigração Americano, uma organização de defesa dos imigrantes baseada em Washington.

Desde que assumiu o cargo, segundo dados federais, o governo Biden permitiu que cerca de 1,8 milhão de migrantes permanecessem no país enquanto aguardavam audiências de asilo, muitos dos quais se entregaram após cruzar a fronteira. Números desconhecidos também entraram no país sem serem detectados.

— As pessoas que querem ir para os Estados Unidos sabem que têm sido um momento vantajoso para tentar entrar no país — disse Andrew Selee, presidente do Migration Policy Institute, uma organização de pesquisa apartidária. — Eles calculam suas chances de entrar antes de irem.

Nos grupos do Facebook e WhatsApp direcionados a possíveis migrantes, uma cascata de usuários tem incentivado os migrantes a fazer a viagem até a fronteira após o término da medida de saúde pública.

“Para aqueles que querem saber se a fronteira está aberta”, disse uma pessoa na semana passada em um grupo do Facebook chamado Darién Jungle Migrant Survivors, “sim, está”.


Fonte: O GLOBO