Investigações da PF já levaram à prisão seis proprietários; organizações ligadas ao tráfico e roubos a bancos estão entre os clientes

“É um clube familiar”, afirma o atirador profissional, armeiro, importador e comerciante de armas Sérgio Pacheco da Silva, num vídeo publicado no Instagram de seu clube de tiro, o SP Guns, em outubro do ano passado. 

No perfil do estande, que também funciona como loja de armas em Carapicuíba, na Grande São Paulo, Pacheco anuncia armas importadas para a venda e lista as qualidades de seu negócio: sala de aula para a parte teórica, espaço de lazer com mesa de sinuca, seis linhas de tiro com alvos transportados de forma eletrônica e serviço de despachante. 

Segundo a Polícia Federal, a propaganda é uma fachada para encobrir os crimes de Pacheco: há dois meses, ele está preso, acusado de ser o principal fornecedor de armas de uma organização criminosa que pratica roubos a bancos e controla rotas do tráfico de drogas em três estados do Nordeste.

Pacheco é um dos seis donos de clubes de tiro e lojas de armas presos, desde o ano passado, sob a acusação de desviar armas ou munição para o crime organizado. Um levantamento feito pelo GLOBO revela que as empresas alvo das investigações têm sede nos estados de São Paulo, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Paraíba e Maranhão. 

Para vender o armamento para as quadrilhas, os donos usam compradores laranjas e empresas fantasmas, fraudam documentos e até forjam furtos em seus estabelecimentos.

Traficantes de clientela

O dono da SP Guns entrou no radar da PF durante a análise de celulares e de contas de e-mail de integrantes da quadrilha de Antônio Arcênio de Andrade Neto, o De Menor, apontado como um dos maiores traficantes da Paraíba. De Menor é acusado de explodir o portão de um presídio paraibano e fugir com outros 91 detentos em setembro de 2018. 

Em junho de 2021, ele foi recapturado em Campinas, no interior de São Paulo, e atualmente está na Penitenciária federal de Catanduvas, no Paraná. A quebra de sigilo de seu celular revelou que De Menor tinha o contato de Sérgio Pacheco salvo no aparelho e que os dois conversavam por um aplicativo.

“A sua”, escreveu o comerciante de armas para o traficante após enviar uma foto de uma pistola 9mm da fabricante tcheca CZ.

Os investigadores também descobriram que laranjas do traficante e de seus comparsas fizeram uma série de transferências bancárias para a conta do dono da SP Guns. Somente entre abril e junho de 2021, pessoas ligadas a De Menor depositaram R$ 381 mil na conta pessoal de Pacheco. Para a PF, o valor é referente à compra de armas pela quadrilha. Preso em março passado durante a Operação Desmonte, Pacheco diz que é inocente.

“O acusado se resguarda ao direito de se manifestar no momento processual adequado sobre o que for necessário à elucidação dos fatos e demonstração da verdade, voltada ao reconhecimento de sua inocência”, afirmou, por nota, seu advogado Fábio Garcia.


Arma exibida em perfil social de armeiro acusado de customizar arsenal de traficante — Foto: Reprodução/Instagram

Na mesma ação, foi preso o armeiro e instrutor de tiro Emerson Lima Leal, o Gordo, dono da loja Clínica das Armas, em Campina Grande (PB). 

Segundo a PF, a empresa — que é frequentada por diversos oficiais da Polícia Militar paraibana — funcionava como uma espécie de “assessoria técnica” para a quadrilha de De Menor: era para lá que suas armas eram levadas para serem customizadas. 

Um dos armamentos do traficante que Leal é acusado de ter equipado é um fuzil 7.62 da marca alemã Mauser com mira telescópica e supressor de ruído, que foi apreendido em abril de 2021 num QG do bando em Caruaru (PE). Pelo serviço, a quadrilha pagou R$ 16,4 mil, depositados na conta de um laranja.

Já em Cruz Alta (RS), Geovane de Freitas da Silva Marangon, dono da loja Sparta, é acusado de ter simulado um furto no estabelecimento para tentar encobrir o desvio de 49 armas — um fuzil, 27 pistolas, 17 carabinas, três espingardas e um revólver — para a facção criminosa que domina o tráfico na região. 

Em 9 de fevereiro passado, o próprio Marangon afirmou à polícia que sua loja havia sido invadida durante a madrugada. O proprietário não sabia, no entanto, que ele já era alvo de uma investigação da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) por sua ligação com o tráfico: semanas antes do “furto”, a polícia encontrou, na casa de um traficante, um bilhete manuscrito com lista de armas (“bico”, “pistola”, “12”) e a inscrição “Madeira”, apelido de Marangon.

— Por conta da investigação, fizemos uma vistoria na loja junto com o Exército dias antes do “furto”. Quando o empresário fez o registro, ele listou várias armas que já não estavam na loja, quando estivemos lá na inspeção, como furtadas. Ali, percebemos que era uma farsa — conta o delegado Ricardo Drum Rodrigues, responsável pelo caso.

No mesmo dia do “furto”, três pistolas que saíram da loja foram recuperadas num ponto de venda de drogas da cidade; o paradeiro das demais ainda é um mistério. Marangon está preso desde fevereiro pelos crimes de comércio ilegal de arma de fogo e associação criminosa.

Outra investigação descobriu que o dono de um estande de tiro em Vitória falsificava documentos para esconder desvios de munição para traficantes. De acordo com a PF, Rodrigo Batista fraudava relatórios de consumo de munição de clientes de seu clube de tiro, o Rasch Sport, que eram preenchidos com quantidades de tiros muito maiores do que os efetivamente disparados. 

A farsa tinha como objetivo “justificar a baixa no estoque, viabilizando a venda em mercado paralelo e clandestino”, de acordo com o relatório da investigação.

— Para justificar a saída das munições da loja, ele aumentava muito a quantidade de disparos feitos no estande. Tinha casos absurdos, mais de mil tiros dados num dia. Quando ouvimos os clientes, eles negavam terem disparado tantas vezes. Ele fazia isso para poder vender a munição em morros capixabas através de intermediários — explica o delegado Bruno Zane, responsável por prender Batista em maio de 2022.

No Maranhão, um inquérito da Polícia Civil descobriu um esquema milionário de desvio de cartuchos por meio de lojas de armas fantasmas. Os irmãos gêmeos e comerciantes de munição Wander e Wanderson Israel Batista Carvalho são investigados por abrirem uma rede de oito empresas espalhadas pelo estado em nome de laranjas “exclusivamente para comprar munições da empresa CBC e fazerem a distribuição a diversos pontos de vendas ilegais nos estados do Pará, Maranhão e Tocantins”, segundo relatório da polícia. 

Um pente-fino feito pela polícia nos balanços das firmas da dupla mostra que, no papel, as lojas tiveram um prejuízo de R$ 19 milhões entre 2015 e 2020 — ou seja, não há registro da venda da munição, somente da compra.

Munição em fundo falso

Em março de 2021, uma abordagem da PM do Pará em Altamira revelou para onde iam os cartuchos comprados pelos irmãos: dentro de um caminhão de Wander que circulava pela Transamazônica, agentes encontraram 27 mil projéteis — sendo que cerca de 20 mil estavam num fundo falso, descoberto somente durante a perícia do veículo. 

Na ocasião, o motorista, que levava R$ 39 mil em cheques, ofereceu R$ 15 mil para não ser preso. Não se sabe para quem seria vendida a munição. Em março de 2022, os irmãos chegaram a ser presos pelo esquema, mas hoje respondem em liberdade graças a um habeas corpus.

O GLOBO não conseguiu contato com as defesas de Emerson Leal, Geovane Marangon, Rodrigo Batista e dos irmãos Wander e Wanderson Carvalho.


Fonte: O GLOBO