Lei que regulariza uso de aparelhos para segurança em Paris sofre críticas

Um turista israelense foi parar nas manchetes de jornais, em 2014, ao ser preso controlando um drone sobre a Catedral de Notre Dame, em Paris. A polícia avistou o intruso pelas câmeras de segurança da área, e o turista pagou fiança depois de passar a noite na cadeia. 

Situações como esta, contudo, podem se tornar mais comuns caso a “Lei Olímpica” — que dá suporte legal à estruturação de um sistema de vigilância com inteligência artificial contra drones e outras ameaças, visando evitar ataques terroristas na cidade durante os Jogos de 2024 — seja aprovada nesta semana. 

Esse sistema, que também usará drones para captar imagens, tornou-se alvo de críticas de partidos de esquerda e entidades de direitos humanos, temerosos de que pavimente o caminho para uma vigilância maior do cidadão.

As regras sobre uso de drones na capital francesa são rigorosas, mas as autoridades do país querem um sistema de proteção do espaço aéreo ainda mais robusto para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2024. Atualmente, é proibido o uso de drones sobre a região metropolitana de Paris, exceto para profissionais que tenham autorização especial do Ministério do Interior e cumpram o regulamento da União Europeia. 

No Brasil, por exemplo, drones com menos de 250g não precisam de registro na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Para os Jogos, autoridades francesas planejam usar sistemas de defesa antidrone, como o drone de captura e pulsão eletromagnética.

‘Aparato sem precedentes’

Entre as preocupações das autoridades, há o temor de que esse tipo de equipamento seja usado em atentados. A AFP apurou que os recursos no sistema para evitar ataques com drones envolvem uso de drones de captura, capazes de lançar uma rede e prender o alvo, além de tecnologia de laser, pulsão eletromagnética e fuzis de interferência.

— Vamos usar um aparato sem precedentes— disse o general Etienne Faury, comandante da Brigada Aérea e responsável pela prevenção aos drones nos Jogos Olímpicos.

A preocupação com o uso de drones por terroristas aumentou depois do protagonismo que esses instrumentos ganharam na guerra na Ucrânia. No conflito, que já dura mais de um ano, há desde o emprego de modelos militares avançados até drones comerciais, de uso civil — que podem ser encomendados pela internet — transformados em armas carregadas com explosivos.

— Para compreender a ameaça que a França pode enfrentar, no ano que vem, basta olhar como esse equipamento está sendo usado, estrategicamente, em guerras reais — diz o professor da Universidade da Força Aérea Gills Vilar Lopes, também professor visitante do Departamento de Estudos de Guerra do King’s College de Londres, que cita a Ucrânia como exemplo. — É uma ameaça acessível a civis e também a terroristas.

Inteligência artificial

E os drones não precisam ser sofisticados ou caríssimos. Em meados de março, soldados ucranianos revelaram à rede CNN terem abatido um drone comercial chinês modelo Mugin-5 que estaria armado. Alguns blogueiros de tecnologia dizem que o equipamento é conhecido como “drone Alibaba”, pois está disponível para venda por até US$ 15 mil (R$ 80 mil) em sites chineses.

“É algo que levamos realmente a sério e trabalhamos a respeito, há tempos”, disse um alto funcionário do governo francês, em condição de anonimato, à agência de notícias AFP, sobre o risco de os artefatos serem usados em ataques.

Para Thomas Pledger, analista militar visitante do Centro de Poder Político e Militar da Fundação pela Defesa de Democracias, a França enfrenta um risco significativo no combate ao terrorismo pela localização geográfica próxima a grupos que atuam tanto na África como no Oriente Médio.

— No entanto, as autoridades francesas e europeias dispõem de barreiras de proteção para impedir a atuação desses grupos — avalia o analista, que explica que o curto espaço de tempo em que ocorrem os Jogos Olímpicos também dá vantagem às autoridades, porque reduz muito a possibilidade de descoberta de vulnerabilidades nos sistemas.

Lopes avalia que a defesa mais eficaz inclui uma mescla de sistemas antidrone. E alerta para a necessidade de preparação para novas ameaças:

— A utilização de vários drones, em formação coordenada, como um enxame, e atrelados à inteligência artificial. É algo que os países estão correndo atrás, para não serem surpreendidos, e a França, mais do que ninguém, está atenta — analisa.

A segurança dos jogos também é o tema do projeto de lei que a imprensa francesa apelidou de “Lei Olímpica”, duramente criticado por parlamentares de esquerda e entidades de defesa dos direitos humanos.

O texto foi aprovado, em primeira votação, pelo Senado e pela Assembleia Nacional e pode receber o aval definitivo esta semana. A lei cria um sistema de vigilância que usa inteligência artificial para processar imagens gravadas por câmeras de segurança, inclusive as carregadas por drones — neste caso, os do governo — por meio de algoritmos.

A legislação libera, temporariamente, o uso de softwares de inteligência artificial com algoritmos para processar imagens captadas por sistemas de vigilância em busca de situações ou movimentações suspeitas, como malas abandonadas e aglomerações.

O governo responde aos críticos dizendo que a autorização não permite o uso de dados biométricos — especialmente os de reconhecimento facial — e que será temporária. No acordo fechado, semana passada, na comissão mista parlamentar que analisa o projeto, fixou-se a data final para o uso do sistema em 31 março de 2025 —sete meses depois do fim dos Jogos. O texto prevê que o tratamento de imagens se destina, exclusivamente, a chamar atenção para eventos predeterminados pela programação do sistema.

‘Estado distópico’

Integrantes do bloco de esquerda do Parlamento Europeu, porém, alertaram para o que consideram “um precedente de monitoramento nunca visto na Europa”. Para a Anistia Internacional, o uso da tecnologia “pode transformar a França em um Estado de vigilância distópico”. 

E a Human Rights Watch argumentou que “a vigilância proposta viola as normas internacionais de Direitos Humanos, uma vez que contraria princípios de necessidade e proporcionalidade e impõe riscos inaceitáveis a direitos fundamentais, como privacidade, liberdade de reunião e associação e o direito a não discriminação”.

Para o analista militar Thomas Pledger, que estava em Atlanta quando uma bomba explodiu nos Jogos Olímpicos em 1996, matando uma pessoa e ferindo dezenas, explica que os franceses estão optando pelo sistema possível, com uso de drones que já estão disponíveis e de inteligência artificial — que possibilita análise mais rápida e eficiente de dados.

— [Em Atlanta] Foi uma resposta lenta, por causa da época, não havia tantas imagens disponíveis. Principalmente se você pensar como é hoje, no ataque de Boston [durante a maratona, em 2013, quando havia sistemas de inteligência artificial], puderam encontrar os responsáveis em 18 horas — lembra Pledger.

Para o analista militar, o importante é garantir que as medidas extraordinárias sejam temporárias.

— A grande questão é saber o que ocorre após a Olimpíada — aponta o especialista, lembrando que a França enfrenta um momento de turbulência política e de manifestações nas ruas. — Tenho certeza de que integrantes dessas comunidades estão preocupados que esse sistema possa se voltar contra eles. Consigo entender por que há preocupação de que se torne um sistema permanente — analisa.


Fonte: O GLOBO