Política externa é uma das prioridades do petista em seu terceiro mandato, buscando reposicionar o Brasil após a gestão de Jair Bolsonaro

Quando abril chegar ao fim, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá passado 18 dos 120 dias iniciais de seu mandato fora do Brasil, com quatro viagens, seis países e quase duas voltas pela Terra. Será um recorde desde a redemocratização, sinal da prioridade que o petista dá ao reposicionamento da política externa após o governo de Jair Bolsonaro, e prenúncio de uma agenda pragmática que já gera alguns atritos com as potências ocidentais.

Após retornar da China no domingo, o petista embarcará já na sexta-feira para uma visita a Portugal e Espanha — idas e vindas que o farão ter percorrido cerca de 76 mil quilômetros em viagens internacionais desde que tomou posse em 1º de janeiro. Com quatro mil quilômetros a mais teria contornado duas vezes o planeta.

Lula deu o pontapé inicial em sua agenda internacional com uma passagem pela Argentina, onde se encontrou com o presidente Alberto Fernández e participou da cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), antes de fazer uma escala em Montevidéu na volta. No mês seguinte, embarcou para três dias em Washington, com compromissos que incluíram um encontro com o presidente Joe Biden.

Ele deveria ter ido em março para a China, viagem que ocorreu entre os dias 11 e 16 deste mês devido a uma leve pneumonia. Em Pequim e Xangai, assinou 15 acordos e deu declarações vistas como antagônicas a Washington em um momento de forte rivalidade sino-americanas. Na volta, durante uma passagem por Abu Dhabi, o petista foi alvo de críticas americanas e europeias após equiparar as responsabilidades de Moscou e Kiev na invasão russa da Ucrânia.

Como Lula, Bolsonaro também fez quatro viagens internacionais no mesmo período, mas diferentemente do petista não aglutinou destinos: ficou 12 dias fora do país somando suas passagens por Suíça, EUA, Chile e Israel. O tempo no exterior foi o mesmo de Dilma Rousseff durante os 120 dias iniciais de seu primeiro mandato, segundo a biblioteca da Presidência da República. No começo de sua primeira passagem pelo Planalto, Lula ficou oito dias longe, e Fernando Henrique Cardoso, 11 dias.

Davos vs. América Latina

Lula, Dilma e FH elegeram em todos os seus mandatos países latino-americanos como destinos inaugurais, em um aceno para a vizinhança — fosse para comparecer a posses, participar de eventos ou fazer a habitual visita de início de governo à Argentina. Bolsonaro, por sua vez, escolheu dar o pontapé em sua política externa no Fórum Econômico Mundial, em Davos, onde se comprometeu com reformas (apesar de não detalhá-las) e com o fim do "o viés ideológico do nosso comércio".

O então presidente foi o primeiro líder latino-americano em meio século a discursar na abertura do evento, e o então ministro da Economia, Paulo Guedes, fez anúncios bem-recebidos pelo mercado internacional. Para Bolsonaro, contudo, a repercussão foi mista entre uma entrevista coletiva cancelada, um pronunciamento que durou apenas seis dos 45 minutos alocados e um almoço apenas com aliados em um supermercado local.

Lula também fez a viagem para a Suíça em 2003, embarcando dias após uma passagem pelo Equador. Desta vez, contudo, preferiu priorizar outra cúpula internacional, a Celac. Em Buenos Aires, ele disse que os países latino-americanos têm muito em comum e "que nada deve nos separar". Tom similar foi adotado durante a recepção que recebeu do aliado Alberto Fernández na Casa Rosada, a quem pediu desculpas pelas "grosserias" de seu antecessor.

Bolsonaro chegou a viajar para a América Latina no começo de sua gestão, mas escolheu o Chile — à época sob comando do conservador Sebastián Piñera — como destino. Junto com outros líderes regionais de direita, criou o Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul), ignorando por completo a já existente União de Nações Sul-Americanas (Unasul), criada em 2008 no auge dos governos de esquerda sul-americanos.

A Unasul à época estava paralisada, após a ascensão de regimes de direitas na região causar divergências políticas que impediram a eleição de um secretário-geral em 2017. Alguns meses depois à criação do Prosul, Bolsonaro lançou mão de um decreto para tirar o Brasil do bloco anterior, que considerava um projeto ideológico da esquerda latino-americana. Lula oficializou a volta neste mês.

Pequim e Washington

Outra quebra com Bolsonaro veio na viagem à China, a maior parceira comercial do Brasil desde 2009. Apesar da relevância econômica de Pequim para a região, Bolsonaro nunca foi ao país e tinha uma relação conflituosa com o governo de Xi Jinping, particularmente durante os anos de Ernesto Araújo à frente do Itamaraty.

O único ponto comum entre as viagens dos dois nos inícios de mandato foram passagens por Washington. Bolsonaro encontrou-se com o então presidente Donald Trump na Casa Branca, e o republicano celebrou que "o ocaso do socialismo chegou no nosso Hemisfério Ocidental". Quatro anos depois, um dos temas pautados por Lula e Biden foi o fortalecimento da democracia na região após os atos golpistas contra os Três Poderes em 8 de janeiro.

O presidente americano teve um papel importante ao não dar panos para as tentativas bolsonaristas de deslegitimar a lisura do processo eleitoral brasileiro e reconhecer a eleição de Lula minutos após o Tribunal Superior Eleitoral confirmar a vitória. No início deste ano, chamou os ataques em Brasília de "atentado à democracia" e declarou "apoio total" às instituições brasileiras — endosso importante dois anos após turbas trumpistas impuserem a seu país um teste de estresse semelhante.

Bolsonaro foi ainda a Israel, onde fortaleceu os laços com o Estado judeu, disse erroneamente "não ter dúvidas que o nazismo foi um movimento de esquerda" e anunciou a abertura de um escritório de representação brasileira em Jerusalém. A decisão foi considerada o primeiro passo para a transferência da embaixada para a cidade que está no centro do conflito árabe-israelense, algo que nunca se concretizou.


Fonte: O GLOBO