Mal-estar é sinal negativo para planos de Macron de traçar plano de paz com a China e pode complicar planos chineses de reforçar relação com a UE

Países europeus responderam com ira após um diplomata da China questionar a independência de ex-Estados soviéticos, complicando os planos chineses de fortalecer suas credenciais para mediar uma solução para a invasão russa na Ucrânia. 

É também um sinal ruim para o plano francês de convencer o presidente Xi Jinping a tomar ações mais contundentes para convencer seus aliados no Kremlin a cessarem os ataques no país vizinho.

O embaixador chinês na França, Lu Shaye, disse ao canal de televisão LCI na sexta que as ex-repúblicas soviéticas não são nações independentes, ignorando as fronteiras internacionalmente reconhecidas da Europa Central e Oriental. 

A própria China os reconhece oficialmente como Estados soberanos desde 1991.

— Não há acordos internacionais que especifique seus status como nações soberanas — disse ele, após ser questionado se considera a Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, parte da Ucrânia.

Depois dos comentários, Estônia, Letônia e Lituânia anunciaram que irão convocar os representantes chineses em seus países para maiores explicações. O trio de países bálticos fazia parte da União Soviética, que colapsou em 1991.

O ministro das Relações Exteriores da Letônia, Edgars Rinkevics, disse em um tuíte no sábado que a ação coordenada de convocar os embaixadores foi uma resposta às “declarações inaceitáveis” de Lu. Margus Tsahkna, seu homólogo na Estônia, chamou os comentários de “falsos e uma má interpretação da História”.

O imbróglio ameaça complicar as tentativas da China de se projetar como uma possível mediadora do conflito entre Rússia e Ucrânia — e seus planos de melhorar as relações comerciais e diplomáticas com a União Europeia. 

O presidente francês, Emmanuel Macron; a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen; e a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, visitaram Pequim nas últimas semanas.

A situação também levanta interrogações sobre o plano do Palácio do Eliseu de trabalhar com a China para criar um caminho para possíveis negociações entre Kiev e Moscou. Macron buscava usar as conversas ente seu conselheiro de Relações Internacionais, Emmanuel Bonne, e o principal diplomata chinês, Wang Yi, para criar uma estrutura que pudesse ser usada para futuras negociações.

A abordagem francesa, de acordo com a Bloomberg, foi criticada por Washington. O fato de não ter consultado primeiramente a União Europeia também foi mal visto por países vizinhos, que consideraram a ação de Macron prematura.

Os planos franceses, segundo o site americano, também alimentam dúvidas sobre o sucesso da contraofensiva ucraniana que deve ocorrer nas próximas semanas para tentar retomar territórios ocupados pela Rússia. A incerteza, afirmam, ameaça fragmentar a aliança ocidental pró-Ucrânia.

Críticas europeias

A Chancelaria francesa disse que recebeu o comentário do embaixador com “lamento”. Em comunicado, o órgão disse que “falta a China dizer se esses comentários refletem sua posição, o que nós esperamos não ser o caso.

“[Nós temos] solidariedade total com nossos aliados e parceiros neste âmbito, que obtiveram sua muito aguardada independência após décadas de opressão”, afirma o comunicado.

Em um Twitter, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, afirmou que a UE “pode apenas supor que essas declarações não representam a política oficial chinesa”:

“Declarações inaceitáveis do embaixador chinês na França questionando a soberania de países que se tornaram independentes com o fim da União Soviética em 1991”, disse Borrell.

A Embaixada da China na França e a Chancelaria chinesa não comentaram o assunto. Já o chanceler da Lituânia, Gabrielius Landsbergis, citou a declaração de Lu em um tuíte no sábado pela manhã para explicar “o porquê dos Estados bálticos não confiarem na China para ‘mediar a paz na Ucrânia’”.

Taiwan, ilha autogovernada vista como província rebelde por Pequim, declarou apoio à posição da Lituânia. Em um tuíte, o chanceler Joseph Wu disse ser “muito triste que a História e a soberania dos Estados bálticos sejam publicamente deturpadas pelo embaixador chinês”.

Não é a primeira vez que Lu causa polêmica com seus comentários. Em 2021, o embaixador na França afirmou ter orgulho de ser chamado de “lobo guerreiro”, referindo-se a uma forma de diplomacia mais assertiva e embativa da qual a China parece querer se afastar. O termo faz referência a um filme patriótico estilo Rambo que fez enorme sucesso de bilheteria no país, indicando

No ano passado, ele pediu que os taiwaneses fossem “reeducados”. Também culpou as “forças estrangeiras” de catalisar os protestos que eclodiram em novembro devido à política de Covid zero, que manteve a China praticamente isolada por quase três anos e chegou ao fim no ano passado.

Relações franco-americanas

O imbróglio vem em um momento particularmente sensível para as relações franco-americanas, após Macron dizer em seu voo de volta da China que a UE precisa criar uma política externa independente dos Estados Unidos. 

Um dos maiores proponentes de um bloco europeu mais forte e soberano, disse que Paris não é um "vassalo" dos EUA ou está disposta a ser arrastada para um conflito com os chineses devido a Taiwan.

A reunificação de Taiwan é uma meta do governo chinês desde que os nacionalistas fugiram para a ilha ao serem derrotados na guerra civil, em 1949. 

Os americanos, por outro lado, embora tenham se comprometido com o princípio de "uma só China" — ou seja, de que o governo de Pequim é o único que verdadeiramente representa os chineses — ao reatar relações com Pequim há 44 anos, mantêm o apoio ao status atual da Taiwan autogovernada e fornecem ajuda militar à ilha.

As declarações de Macron foram vistas como insensíveis por Washington e, segundo fontes anônimas disseram ao New York Times, que demandam maior apoio francês — nem que por "gratidão" pela ajuda americana à Ucrânia, diz a reportagem. Biden e Macron chegaram a conversar após isso, mas comunicados de ambos os lados deram a entender nas entrelinhas que o tom da ligação não foi muito amigável.

A Casa Branca disse que a dupla "reafirmou a importância de manter paz e estabilidade no Estreito de Taiwan". Os franceses, por sua vez, não fizeram qualquer menção à ilha, mas buscaram contradizer a ideia de que há um mal-estar.


Fonte: O GLOBO