Com investimento em vídeos cinematográficos nas redes sociais, presidente salvadorenho promove sua ‘guerra contra as gangues’, que prendeu 1% da população; com recorde de popularidade, ele vira ‘exemplo’ antidemocrático na região

Em um vídeo de quatro minutos e meio, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, garante que “após 31 anos de falsos acordos de paz, nosso povo finalmente vive uma verdadeira paz”. Publicadas em 27 de março, quando o estado de exceção completou um ano em vigor , as imagens foram editadas em um estilo hollywoodiano e com legendas em inglês. 

Bukele aparece em alguns de seus discursos memoráveis, enquanto cenas de dentro da “maior prisão das Américas”, o Centro de Confinamento do Terrorismo, mostram membros de gangues perfilados, ajoelhados e sem camisa, sendo constrangidos pelas forças policiais.

Na gravação, Bukele evidencia as duas principais características de seu governo: o eficiente uso das redes sociais e uma política de mão de ferro contra as gangues, que é altamente criticada em questões de direitos humanos, mas diminuiu a criminalidade drasticamente. A fórmula lhe garantiu 90% de popularidade, facilitando o controle dos demais poderes do país. E, segundo especialistas, o modelo corre o risco de se alastrar por na região.

Em um ano de regime de exceção, seu governo prendeu 65 mil pessoas — ou cerca de 1% da população do país. Destas, pelo menos cem foram mortas nos presídios, onde torturas são recorrentes — e devidamente filmadas e postadas. E a “guerra contra as gangues”, grande bandeira de seu governo, é documentada religiosamente em suas redes sociais, onde Bukele é quase um popstar.

Só no Twitter, o presidente de 41 anos conta com 5 milhões de seguidores, em um país com 6,3 milhões de habitantes e que tem a violência com uma das maiores mazelas nacionais. A causa do problema remete à pobreza que levou a uma massiva imigração ilegal aos EUA, onde muitos delinquentes foram detidos e formaram as “maras” nos presídios americanos.

A decisão de Washington de turbinar expatriação de condenados “exportou” as gangues para seus países de origem, em especial em Honduras, El Salvador e Guatemala, piorando a situação social e de segurança destas nações do “Triângulo Norte” da América Central. Populista e autoritário, Bukele usou a força e o controle pessoal do governo como estratégia para enfrentar a violência.

— À diferença de outros presidentes, que combatiam as gangues sem eficácia e tentavam esconder seus excessos, Bukele se aproveita de um estilo hollywoodiano para justamente expor e tornar visíveis esses excessos, com um ótimo gerenciamento das redes sociais — afirma Daniel Zovatto, diretor regional para a América Latina e Caribe do Instituto Internacional para Democracia (Idea).

Tiziano Breda, especialista em América Latina para o Instituto Affari Internacional (IAI), concorda: Bukele tenta se aproveitar um sentimento muito comum na sociedade salvadorenha, a boa aceitação por uma resposta forte do Estado contra o crime, com vídeos bem feitos, uso de drones e até técnicas cinematográficas.

— Ele se aproveitou desse sentimento e levou isso ao extremo, a ponto de desumanizar as gangues, e com isso, minimizar os abusos das forças de ordem. Nos vídeos, vemos os presos recebendo socos e tapas, com sangue na boca. Em um deles, Bukele chega a debochar: ‘Talvez eles tenham comido batatas-fritas com ketchup’ — diz o analista. — Por outro lado, sabe usar muito bem os números, uma ferramenta para demonstrar a efetividade do estado de exceção.

O regime, um instrumento extraordinário permitido pela Constituição, foi adotado após um fim de semana violento, em março do ano passado, quando membros da gangue Mara Salvatrucha (MS-13) mataram 62 pessoas em apenas um dia. Foi a deixa para um governo que já revelava seu viés autoritário — no começo de 2020, com a justificativa da pandemia, Bukele já havia autorizado a polícia e o Exército a usarem “força letal” para defender a população e combater as gangues do país.

Bukele também havia alterado substancialmente o sistema judicial do país, aposentando compulsoriamente um terço dos magistrados, ampliando seu controle sobre o poder e destituindo a Suprema Corte salvadorenha — ele chegou a ser citado como exemplo pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) devido às manobras, quando ele e seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) abriram uma guerra contra a Justiça brasileira.

Modelo exportado

Com a aprovação altíssima, o presidente se prepara para buscar a reeleição nas eleições de fevereiro de 2024, embora a Constituição o proíba em vários artigos. A reeleição é dada como certa para a maioria dos especialistas, que temem que seu “método” se alastre pela América Latina. No Chile, Rodolfo Carter, prefeito de La Florida, vem se tornando popular ao derrubar casas de traficantes. Na Argentina, o advogado midiático Fernando Burlando apareceu à frente em uma pesquisa recente para governador depois que elogiou, em seu Twitter, a fórmula do presidente salvadorenho.

— Bukele está construindo um modelo autoritário que tem, no momento, eficácia no combate à delinquência, mesmo que a um custo muito alto. Por isso começa a gerar uma discussão, em países onde o problema é gritante — diz Zovatto.

Rina Montti, diretora de investigação de direitos humanos da ONG Cristosal, destaca ainda que seu discurso seduz principalmente os jovens, maioria na América Latina.

— Há muito investimento por parte da máquina estatal em exportar sua imagem e seu modelo a potenciais candidatos da direita conservadora, com viés autoritário.

Em um ano, foram assinados outros 15 decretos legislativos, que instituíram mudanças significativas no sistema de segurança pública e justiça do país. Com isso, o governo Bukele conseguiu o aval para condenações arbitrárias, sem julgamento prévio, suspendeu o direito de um suspeito de ter um advogado de defesa quando detido pela polícia, além de permitir a prisão de menores a partir de 12 anos, que podem pegar penas até dez anos. 

Um relatório do ano passado, publicado pela Human Rights Watch em parceria com a Cristosal, mostrou que 1.600 crianças e adolescentes de 12 a 17 anos foram presos durante o estado de exceção.

Além disso, segundo dados da ONG, apenas 30% dos detidos são membros de gangues. E a grande maioria dos presos são os chamados “soldados”, que não têm uma liderança ativa em nível nacional ou mesmo regional, explica Montti.

— Muitos dos líderes saíram do país ou estão escondidos. Por isso, para efeitos práticos, há sim uma redução da criminalidade. Mas tememos que uma nova reconfiguração das gangues possa levar ao aumento do narcotráfico no país, que é uma rota de passagem para os grandes cartéis — afirma Montti. — Além disso, o governo não trabalha com um processo de prevenção da violência ou menos de reinserção social. É uma maneira de tapar a ferida, mas não saná-la.

Com as arbitrariedades , o número de presos disparou: El Salvador tinha, em março de 2022, 605 detidos para cada 100 mil habitantes. Hoje, o número chega a 1.540 por 100 mil. Ou seja, no total, incluindo os já detidos antes do ano de exceção, 1,5% da população está atrás das grades.

Pesquisas mostram que um terço dos salvadorenhos conhece alguém que tenha sido detido injustamente. O Movimento dos Trabalhadores da Polícia também diz ter recebido diversas denúncias de agentes que se queixavam de ter uma “cota diária de detenções”. Ainda assim, a taxa de ressentimento em relação ao estado de exceção é muito baixa.

— A maioria da população entende que pode ter havido erros, mas ao mesmo tempo vê com bons olhos a redução das gangues. Bukele recuperou a confiança nas instituições policiais: agora, uma denúncia pode levar a uma captura — diz Breda.

Judiciário enfraquecido

No caso do Judiciário, Bukele conseguiu acabar com a independência dos juízes por meio de decretos aprovados no Congresso, controlado por seu partido, o Novas Ideias, desde as eleições legislativas de 2021. A Cristosal ainda relata casos de juízes que decidiram libertar pessoas julgadas sob as regras do regime, e foram retaliados: enviados a tribunais distantes ou rebaixados para cargos inferiores. Além disso, o presidente criou varas específicas para julgar membros de gangues, os Tribunais Contra o Crime Organizado.

Mas o que explica a aprovação da população salvadorenha a medidas tão autoritárias?

— Primeiro, há o cansaço de uma sociedade assustada pelas gangues, que após décadas de violência acredita que apenas uma resposta forte poderia solucionar a insegurança. Por outro lado, é uma sociedade que nunca teve uma justiça eficaz em relação ao conflito armado, onde os crimes raramente são julgados. A população já não acreditava na justiça e nos processos judiciais — explica Breda.

Para Zovatto, do Idea, Bukele “soube usar as redes sociais para tocar o nervo mais sensível do ser humano: o medo”.

— Eles cedem parte de sua liberdade e direitos em troca de segurança.


Fonte: O GLOBO