Viagem oficial do governo ao país do Oriente Médio, em 2019, rendeu presentes da Cartier e da Hublot; para o TCU, os itens recebidos estão em 'desacordo com o princípio da moralidade pública' e extrapolaram os 'limites da razoabilidade'

A Secretaria-Geral e a Comissão de Ética da Presidência da República foram notificadas nesta quarta-feira pelo Tribunal de Contas de União (TCU) sobre os relógios de luxo recebidos por parte dos integrantes da comitiva do ex-presidente Jair Bolsonaro em viagem oficial ao Catar, em 2019. Para o órgão, as peças de luxo recebidas estão em "desacordo com o princípio da moralidade pública" e extrapolaram os "limites da razoabilidade". Das grifes Cartier e Hublot, os itens podem custar até R$ 53 mil.

A decisão atendeu parte de um pedido do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP). A Comissão de Ética Pública da Presidência analisou o caso em 2022, e entendeu à época que os membros da comitiva não precisavam devolver os presentes. A decisão difere da tomada pelo TCU nesta semana.

Os relógios de luxo foram destinados a ministros de Bolsonaro na época. Os beneficiados foram Gilson Machado (Turismo) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores). O deputado Osmar Terra (MDB) também recebeu uma peça, assim como Sergio Ricardo Segovia, então presidente da Apex; e Caio Megale, economista-chefe da XP Investimentos, que era chefe da Assessoria Especial de Relações Institucionais.

Em nota, o economista Caio Megale, informou que vai devolver o relógio após a recomendação do TCU. Segundo Megale, quando ganhou o acessório, reportou imediatamente ao Comitê de Ética da Presidência da República para saber como proceder nessa situação. Em 3 de março de 2022, a Comissão informou que os presentes não precisariam ser devolvidos. "Mesmo assim, o economista optou por não fazer uso do objeto, que mantém-se intacto e embalado, sem nunca ter sido usado, caso houvesse mudança de orientação", informa a nota.

Os relógios

Apesar do valor dos relógios dados à comitiva brasileira ter sido revelado (até R$ 53 mil), não se sabe, contudo, quais foram os modelos. Na francesa Cartier, o valor dos itens masculinos varia entre R$ 26,9 mil e R$ 209 mil. Na suíça Hublot, eles podem custar de R$ 45,2 mil a R$ 300 mil, em valores atuais.

Na Cartier, não há disponível no site oficial da marca, até o momento da publicação desta reportagem, um relógio masculino que se aproxime dos R$ 53 mil. O mais próximo desse valor é o modelo grande do "Santos-Dumont", vendido atualmente por R$ 39 mil. O bisel, anel em torno do mostrador, é em ouro rosa 18K, o vidro é de safira e, a pulseira, é em couro de crocodilo preto.

Na Hublot, o modelo masculino que mais se aproxima do valor revelado é o "Titanium King Gold", que custa, atualmente, R$ 54 mil. Ele é vendido como sendo sinônimo de uma "elegância reinventada". A marca suíça é famosa pelo uso de titânio nas peças.

Camisa da seleção em troca

Na ocasião, o encontro de Jair Bolsonaro e o emir do Qatar, Tamim bin Hamad al-Thani foi para promover relações bilaterais entre os dois países. Apenas depois da volta ao Brasil, alguns presentes foram repassados aos membros do governo pela Presidência da República.

No mesmo episódio, a comitiva brasileira presenteou às autoridades do Qatar peças alusivas à cultura brasileira. O emir Tamim bin Hamad al-Thani, por exemplo, recebeu camisas do Flamengo e da seleção brasileira.

Também foram presenteados o ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, e o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência. No período, Onyx e Heleno não revelaram quais presentes receberam. O único a devolver o presente foi Roberto Abdalla, embaixador brasileiro em Doha na época da viagem. Ele abriu mão do Hublot devido ao "seu custo elevado".

O ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, recebeu uma placa com os seguintes dizeres inscritos: "Qatar Business Incubation Center – Developing the Next QAR 100 Million Companies in Qatar". O objeto não tem valor comercial.

O caso chegou em 2022 à Comissão de Ética Pública da Presidência, após Caio Megale levantar dúvida quanto a ser ético ou não ficar com o relógio da Cartier. Ele recebeu o presente um mês depois da viagem através de um ajudante de ordens da Presidência da República.

O caso terminou em empate na comissão. Assim, coube ao seu presidente, André Ramos Tavares, decidir. No seu entendimento, os membros da comitiva não precisavam devolver os relógios. Segundo ele, isso não seria uma "flexibilização da regra", mas uma "hipótese normativa de exceção". A decisão foi justificada tendo com base uma declaração do Ministério das Relações Exteriores que afirma terem sido os presentes parte de uma prática usual das relações diplomáticas.

Tavares, no entanto, sinalizou para a necessidade de se estabelecer um critério objetivo para tais situações, com a definição de um valor máximo para os presentes que podem ser aceitos em função de relações diplomáticas.

Já o TCU entendeu que o "recebimento de presentes de valor tão elevado afrontaria o princípio constitucional da moralidade" e extrapolaria o código de conduta da alta administração pública.


Fonte: O GLOBO